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                            O PESO DA DIFERENÇA

                                                   (baseado em fato real)

                                                                                Maria Helena Kühner                  

 

 

Entra alguém correndo e gritando para todos os lados:

1 – Tem um homem morto no banheiro feminino!

VOZES ( off) – Um homem… morto?

                      – No banheiro feminino?!

1É! Cheio de sangue! Deve ter sido assassinado!

2– ( entrando) – Um homem assassinado, no banheiro feminino? Como foi isso?

1-   Não sei! Vai lá ver! Vão lá! Chamem a polícia!

Breve corte de luz. Reabre com policial ou investigador falando a um cliente da boate:

Cliente – O morto eu conheço, sim. Metido a gostoso, a machão. Eu mesmo já tive um pega com ele, chamei pra uma briga lá fora, porque estava se engraçando com minha namorada.

Policia – Mas você não ia assassinar ele por isso.

Cliente – Inda mais no banheiro feminino. Vai ver ele tentou assediar ou estuprar  

             uma  mulher…  e foi violento… ela reagiu e…

Policial – … eela  devia ter algo cortante ou agudo, com que na briga fez cortes e

                incisões no peito e no braço, e acabou enfiando na jugular dele.

Cliente – Pô, na jugular… é um ponto vital.

Policial – Daí a hemorragia que liquidou com ele.

Cliente – Vai ver ele caiu e aí ela fugiu quando viu que o matou.

Breve corte de luz. Reabre em outro ponto, com outro policial falando a casal:

Policial – Vocês estavam aqui na hora do crime? Viram ou ouviram alguma coisa?

Homem- Estávamos. Eu venho sempre aqui. Mas a casa ‘tava lotada, e com música e burburinho fica difícil ver ou ouvir alguma coisa.

Mulher- Mas uma coisa me chamou a atenção: o nervoso de nossa vizinha de mesa, quando veio de lá, acho que do toalete, pegou a bolsa e o casaco quase derrubando a cadeira e saiu rápido, deixando na mesa o copo de bebida ainda cheio.

Policial – Sabem que é?

Mulher – Éuma mulher alta, loura, bonita, bem vestida. Tava na mesa bem ao

                lado da nossa.

 Homem – Acho que já vi essa mulher aqui algumas vezes. Mas não sei quem é,

                não.

Policial – Se é cliente da casa o gerente deve saber. Vou falar com ele.

Homem – Mas acho que ele já foi. Em geral só fica até meia- noite. Depois deixa   

               com o subgerente.

Policial – Voltamos amanhã, se for preciso. E se souberem de algo mais, por

               favor nos informem.

       Breve corte de luz. Reabre com uma moça loura e bonita diante de um

Moça – O senhor é advogado criminalista, não?

Ele – Sou. Em que posso lhe ser útil?
Moça – Eu vim procurá-lo porque eu… eu queria lhe fazer uma consulta e… e

           saber se…se pode pegar um caso, se for necessário.

Ele – Depende. A senhora está com algum problema?

Moça – Não! É… é meu irmão! É que, ontem à noite, meu irmão se envolveu em uma briga em uma boate e, para se defender, usou um canivete contra o agressor. Agora dizem que o homem morreu e… e ele está com medo de ser acusado de um crime.

Ele – Eram só os dois brigando? Não teve outros envolvidos? Ou testemunhas?

Moça – Não. Foi no toalete. Estavam só os dois.

Ele – No toalete…?

Moça – É. E foi o homem que o agrediu! Foi legítima defesa!

Ele – Mas o uso do canivete é um complicador: porte de arma.

Moça – Então ele não tinha direito de se defender?

Ele – De se defender, sim. De matar, não!

Moça – Ele não queria matar! Mas o que é que ele podia fazer? O homem o agrediu!

Ele – Ele saiu agredindo assim, sem mais nem menos? Eu preciso saber dos detalhes. Por exemplo: a arma do crime ficou no local?

Moça – Não! Trouxe! Mas será que não seria melhor ele fugir, sumir por uns tempos…

 Ele- Não. Fugir seria confissão de culpa. Temos que esperar pra ver o que acontece.

Moça – Esperar. É que é difícil ficar nessa agonia, sem saber se…

Ele – Diga a seu irmão que me procure para conversarmos. E aí vemos o que fazer, como agir.

Breve corte de luz. Reabre com policial com o Gerente.

Gerente – Sou gerente daqui há anos. E lhe garanto que não é puta, não, que em minha casa eu não permito. Eu acho que sei quem é, sim. Pela descrição é a Lorena.

Policial – Lorena…?

Gerente – É. Um travesti. Olhando a gente jura que é mulher. Teve até um cara que só descobriu na hora H e deu uma baita surra nele. Quebrou ele feio.

Policial – E sabe onde esse traveca mora?

Gerente – Sei não. Mas deve ser aqui perto, ou nesse bairro mesmo. O porteiro deve saber.

Policial – Depois do crime, alguém viu esse… essa Lorena?

Gerente – Não. Hoje ela não apareceu.

Policial – O que já pode ser sinal de culpa. Pelo sim, pelo não, vamos achar o tal traveca e levar pra investigação lá na DP.

       Breve corte de luz. Reabre com rapaz de uns 30 e poucos anos diante do

                                  Advogado.

Advogado – Sua irmã me procurou, sim. E eu pedi que você viesse falar comigo. Mas…  vocês são gêmeos?  São tão parecidos!

Ele – Doutor, eu… eu …sou ela.

Advogado –– Você… é ela?

Ele – O senhor pediu pra conversar comigo. Mas eu precisava saber se não ia me rejeitar, quando soubesse que… Sabe, eu vivo diariamente a experiência da rejeição, da exclusão. Eu precisava saber se ia me aceitar, se ia aceitar me defender. E achei que posso confiar no senhor. Além do que eu preciso muito de sua ajuda.

Advogado – Então, o primeiro passo para que eu possa ajudá-lo é ser verdadeiro. Não mentir nem omitir nada – mesmo que seja algo contra você. Do contrário irá comprometer não só você mesmo como o meu nome profissional.

Ele – Prometo ser totalmente sincero. Até porque sei que minha vida vai estar em suas mãos.

Advogado – Então vamos começar. Pois se estão investigando o caso, logo, logo vão chegar a você.  Preciso saber de tudo, sobre você e sobre essa briga.

       Breve corte de luz, para a Delegacia, onde dois policiais conversam.

1-   Esse traveca vai se dar mal… Dar cabo de um cara rico, conhecido, bem situado…

2 – A família está no meu pé. Já telefonaram vinte vezes, mandaram o advogado deles e tudo. Querem porque querem pegar quem matou e meter atrás das grades.

1-     O morto pode ser importante, mas, pelo que eu soube, era também um bom filho da puta. Vai ver foi até execução, a mando de algum outro figurão ou de alguém a quem ele prejudicou.

2 – E não interessa abrir isso. Por isso abafaram o caso. Não saiu uma nota nos jornais, reparou?

1 – E o obituário era só elogios…

2 – Mas isso não explica porque iam mandar um traveca fazer o serviço. Só se era pra desmoralizar o morto, mostrar com quem ele estava andando…

             Alguém entrando:

Consegui! Tá aqui o nome e o endereço dele! É a umas três quadras daqui!

1- Então vamos lá, caçar o pássaro antes que ele levante vôo!

            Corte  para o escritório do Advogado:

Lorena – Eu tenho pavor de ser preso, Doutor Paulo. Como eu lhe disse, eu morei um tempo em Belo Horizonte e lá, numa batida policial nos bares, à noite, alguém disse que eu era um travesti e eu fui preso. Na delegacia o Delegado me botou numa cela separada, dizendo aos outros que ele “ia me usar pra fazer uma limpeza no bairro”.  Me usar… Ele me usou, sim… Todas as noites eles dizia que “ia dar um bordejo comigo para eu  apontar todas as putas, travestis, traficantes e bandidos, que eu devia conhecer todos muito bem, já que era da mesma laia”. Que o sonho dele era “meter toda essa corja atrás as grades, ou se pudesse, até eliminar essa raça toda!” Hipócrita! Cínico! Com esse discurso moralista me metia no carro, algemado, e me levava… pra uma mata perto. E ali ele me usava e abusava de todas as maneiras. Com ele aprendi o que é sadismo, vi até onde o sadismo pode chegar, como é que alguém pode ter prazer em dominar, humilhar, espezinhar um outro que não é um animal nem uma coisa, que é um ser humano igual a ele! Mas no fim de uns dias eu acho que ele viu nos olhares e meios sorrisos dos demais que já estava soando esquisita aquela sua “investigação”. E eu também tinha conseguido passar por um cara que foi solto um recado para minha irmã, e ela foi à delegacia com um advogado. E me soltaram. Mas eu tenho muito medo de ser preso. Se me pegarem…

Advogado – Ande com o número de meu celular. É um direito seu ligar para seu advogado.

Ele – Um direito meu? Mas… eles vão respeitar esse direito?

Advogado – Isso eles respeitam, sim. Me ligue.

            Corte para a Delegacia. O Advogado diante do Delegado.

Advogado – Sou advogado dele. Vim pagar a fiança e pedir sua soltura.

Delegado – Ele ainda não está liberado.

Advogado— Masnão pode ficar preso. Ele é apenas suspeito, sem culpa formada. E além do mais é réu primário, não tem sequer antecedentes criminais.

              Entra alguém trazendo Lorena, ar aflito.

Lorena– Dr. Paulo! Que bom que o senhor veio!

Advogado-– Eu disse que aceitaria defendê-lo, não disse? Então vou acompanhar tudo, passo a passo.

Delegado – Ele não pode sair da cidade, nem mudar de endereço. E tem que estar à disposição, se for intimado a vir prestar esclarecimentos.

Advogado – Estamos sabendo. Se formos chamados, eu mesmo virei com ele.

              Os dois, saindo.

Advogado – O caso irá a julgamento.

Lorena – Daqui a quanto tempo?

Advogado – Meses, no mínimo. Vou tentar acelerar o processo, para que a audiência ocorra o mais rápido possível. Mas não vai ser fácil, desde já lhe previno que não vai ser fácil.

Corte de luz. Reabre para sala de Audiência de um Tribunal de Júri: Juiz, Promotor, Adv. de Defesa e Réu (Jurados visíveis ou não). Julgamento em curso.

Juiz – Com a palavra o Dr. Promotor.

Promotor- Este julgamento de hoje, a meu ver, será simples e rápido.  O que temos hoje, aqui, mais uma vez, é um caminho que se mostra cada vez mais comum e freqüente: a moda hoje é chamarem de “opção sexual” a um desvio que leva da anormalidade à libertinagem, ao desregramento, ao desrespeito às regras e normas da sociedade constituída, e, rapidamente, passa dessa anormalidade à ilegalidade e ao crime. É exatamente o que vemos neste caso: um travesti que quer por força ser mulher se achou no direito de usar um toalete feminino e, ao ser interpelado por isso, reagiu matando! E agora cinicamente pretende que seu ato seja considerado legítimo e defensável! Ou seja, quer que, além de tolerar que ele desrespeite a moral e os bons costumes, tenhamos ainda que tolerar que ele faça o que lhe der na cabeça, violando todas as regras, todas as normas e todas as leis, sem que nada lhe seja cobrado! Se tolerarmos isso, o preço de nossa tolerância será muito alto: será o mesmo que premiar a imoralidade e o vício, o mesmo que rasgar todas as leis que alicerçam nossa sociedade e nos levar ao caos social! Por isso estou certo de que os digníssimos membros do Júri verão no réu o que ele realmente é – um homicida cínico e libertino, frio e deliberado – e como tal o julguem e o condenem como ele merece!

Juiz – Com a palavra o Dr. Advogado de Defesa para a réplica.

Advogado – É curioso o Snr. Promotor não ter uma palavra sequer para a atitude brutal do agressor, que obrigou o Réu a tentar se defender. A Justiça, bem o sabemos, tem como símbolo uma balança com dois pratos, cujo equilíbrio se busca para que a Justiça se faça. Por que livrar o agressor de qualquer culpa e ignorar que o Réu agiu em defesa própria? Também não hesita em desviar o foco da questão: o que está em questão não é a pessoa do Réu – do qual o Snr. Promotor tenta dar de antemão uma imagem preconcebidamente negativa – e sim um ato seu e as circunstâncias em que se deu e pelas quais ele deve ser julgado.

Mas, ao fazê-lo, também acaba de demonstrar como a linguagem pode ser usada para, manipulando as palavras e dando ao Réu rótulos e adjetivos que o desqualificam (“desvio, anormalidade, libertino, cínico”), tentar distorcer a realidade e influir na mente dos que ouvem para fazer ver as coisas como ele quer que as vejam, e assim fazer pensarem como ele. Não vamos cair nessa cilada, que elimina nosso senso crítico e nossa capacidade de avaliar e julgar. Por exemplo, ele fala em normalidade, normas. Normas ou regras não são princípios ou valores imutáveis, como o são a Justiça e o Direito. Pelo contrário, as normas variam com o tempo, o lugar ou os interesses que as criaram. No Oriente Médio reina a poligamia, e é “normal” um sultão ter inúmeras mulheres. Já nas Ilhas Trobiand, como demonstra a antropóloga Margaret Mead, a “norma” é a poliandria, cabendo a cada mulher ter vários maridos. E aqui no Ocidente a norma é a monogamia – pelo menos em teoria…

Promotor – Meretíssimo, não vamos ficar em uma discussão infindável sobre conceitos e palavras dos quais o Dr. Advogado parece ter uma noção, digamos eufemisticamente, um tanto “pessoal”, que não é a minha nem a da sociedade em que vivemos. Eu sou um homem prático, não quero discussões filosóficas ou lingüísticas, e por isso sugiro passarmos aos fatos. E para isso gostaria de interrogar… o próprio réu.

             A um gesto do Juiz, o Réu se dirige ao banco das testemunhas e o Promotor dele se aproxima. 

Promotor- Você tem mãe? Tem família?

Réu – Minha mãe já morreu. Tenho uma irmã.

Promotor- Ah, sua mãe já morreu… De desgosto, talvez, de ver o filho tornar-se um pervertido, cair na degeneração que o levou ao rime.

Advogado – Protesto! O Snr. Promotor não tem direito de ofender o Réu!

Juiz – Deferido. Modere seu tom, Snr. Promotor.

Promotor- O senhor considera “normal” ser um travesti? Não achou outro jeito de ganhar a vida?

 Advogado – Protesto!

Réu – Pode deixar. Eu respondo. Eu não “ganho a vida” como travesti. Eu trabalho. Tenho uma profissão. Eu sou cabeleireiro.

Promotor – (riso de deboche) Ah, ah, ah… Cabeleireiro… Só podia ser,…

Réu – E sou considerado um bom profissional por minhas clientes. Tenho prazer em pentear cabelos femininos. Em embelezar com eles o rosto de uma mulher. Uma cliente minha, que é psicanalista, diz que é mecanismo de projeção, que eu me vejo nas mulheres que cuido e embelezo.

Promotor- Uma psicanalista… E o que ela diria aqui de seu ato? Foi raiva, inveja do sexo masculino? Vingança das vezes que lhe bateram ou xingaram? Sim, porque matar alguém só porque o interpelou por estar desrespeitando (para o Adv.) as “normas” hoje e aqui vigentes, sendo homem e indo a um banheiro feminino, é um ato que não se explica a não ser por ódio, vingança, culpa ou outras razões – como deve ser o seu caso.

Réu – Não! Eu estava me defendendo! A agressão partiu dele!

Promotor- – E você foi apenas “a vítima inocente”… Ah! Sei… Mas, mesmo sabendo que será a sua versão dos fatos, pois o morto não pode mais falar, poderia então nos contar o que aconteceu naquele toalete feminino que o levou a matar seu suposto agressor?

Réu – Quando entrei no toalete feminino ele veio atrás de mim: ”Hei, que negócio é esse? A boneca se acha no direito de entrar no banheiro de mulheres? Hein?” Meteu a mão no meu peito e começou a me empurrar e a xingar: “Não respeita ninguém, viadinho? Não respeita nada, seu imoral? Acha que só porque é uma bicha louca pode fazer o que quer, curtir com a cara da gente? Pois eu te mostro que não! Eu acabo contigo, te quebro, te arrebento aqui mesmo!” Eu dizia “Pare! Espere! Pare! Eu saio! Eu saio! PÁRA!” Mas ele não me ouvia, continuava me empurrando e gritando que “gente como eu não devia existir, que eu era um acinte à sociedade” e que “ia me dar uma lição!” Quando meteu a mão aberta no meu rosto e desceu pro pescoço, apertando, apertando, como se quisesse me estrangular eu… eu perdi a cabeça. Puxei o canivete e comecei a dar golpes no ar, a tentar atingir o braço dele, o peito, o corpo, onde fosse, para fazê-lo parar! Levei um susto quando ele deu um grito, Ai! e vi um jorro de sangue sair de seu pescoço e começar a escorrer. Ele parou, eu também parei. E quando vi que ele ia cair, ou desmaiar, me apavorei e saí correndo. No dia seguinte soube pelo porteiro da morte. E a partir daí não tive mais um minuto de sossego…

  Promotor – Como vemos, Snrs. Jurados, que houve homicídio é, então, algo inegável, fato confesso.  E os fatos falam por si: de um lado, alguém que foi um tanto grosseiro ou mal-educado, talvez, mas do outro, um ataque à mão armada que causou morte.  Não sei como o Réu ainda pretende fazer-se passar por “um bom profissional” sendo alguém que, como transviado e assassino, se mostra duplamente nocivo à sociedade em que vive. E que por tal deve ser afastado, e definitivamente, se acaso, do convívio social.

Advogado – Meretíssimo, se me permite… Mais uma vez comprovamos que o Dr. Promotor se esforça em confundir pessoa e ato, e em dar aos jurados uma pré-concebida imagem negativa do Réu. Gostaria de chamar como testemunha a psicanalista citada, a quem ele procurou logo após o ocorrido. Para vermos o que ela tem a dizer.

Promotor – Concordo. Veremos o que ela diz de sua perversão – pois embora o ilustre Defensor evite usar a palavra é evidente que foi essa perversão o leitmotiv, a causa primeira do crime.  

Advogado – Já que ela é recorrentemente lembrada, embora o ilustre Promotor diga que também não lhe agrada a expressão que eu uso, gostaria de antes perguntar ao Réu: como surgiu sua opção sexual ?

Réu – Minha irmã conta que, quando eu tinha 4 anos de idade, eu não gostava de brincar com os meninos, dizia que eles eram brutos, que só queriam brincar de guerra, de bandido, de briga… Que eu preferia brincar com as meninas, de casinha, de colorir, cortar e colar, de desenhar vestidos para as bonecas delas… E então eles me chamavam de “Mariquinha”, me empurravam, me expulsavam de todas as brincadeiras. Eu não entendia, ficava magoado, chorava… E isso ainda piorava tudo. Quando eu contava em casa, meu pai me batia, me mandava voltar para a rua e brigar com eles, e se eu chorava dizendo que não ia, me batia ainda mais e gritava que ele era um desgraçado, que esperara tanto um filho homem e lhe nascera “isso”… Dizem que a infância é a fase mais feliz da vida. A minha, pelo que me lembro, foi um inferno…  Eu não sabia o que fazer, não sabia como lidar com isso, com essa maneira diferente de ser, de sentir… Que só anos e anos depois eu iria entender, mesmo que eu ainda não saiba explicar por quê essa diferença. Mas então, quando vim do interior para a capital, onde ninguém me conhecia, decidi me travestir de mulher. Que eu me sentia mulher, eu me sinto mulher…

Advogado – Obrigado. Sem mais perguntas. Gostaria agora que ouvíssemos, como testemunha, a psicanalista mencionada, a Dra. Mariana de Góes.

                   Breve corte. Reabre com a Dra. no banco de testemunhas.

Advogado – Doutora,como a Sra. deve ter visto, o Sr. Promotor se empenha em seu discurso em eliminar as circunstâncias em que se deu o fato, a agressão de que o Réu foi vítima e o forçou a uma defesa legítima, marcada embora pelo descontrole emocional a que foi induzido, e levando a resultados imprevistos, mas de forma alguma desejados ou intencionais. Eu lhe pergunto: tem algum fundamento a relação que o Snr. Promotor insiste em sublinhar e apontar como leimotiv do ato?

Doutora – Não. Como a moral define o conjunto de práticas de costumes e padrões de conduta vigentes,  em uma sociedade que se organizou com base na proibição e no interdito, ou seja, uma sociedade que se organizou repressoramente, como é o caso da nossa, as condutas ligadas ao sexo são sempre objeto de fácil apelo moralizante. Mas essa “pré-determinação” de cunho moral que o Snr. Promotor insiste em estabelecer não existe em absoluto. Como vejo que o Snr. Defensor gosta de ir à raiz das palavras, lembro que a palavra perversão vem de per-vertere, ou seja, designa apenas oatode verter por, de dar passagem a, sem direção pré-fixada. Todo sujeito tem uma quantidade de energia sexual, a libido, que, tal como a fome no organismo, busca satisfazer-se procurando os objetos nos quais vai investir essa energia. Na infância, por não ter ainda uma identidade, a criança dirige seus desejos para qualquer objeto, desorganizadamente, sendo por isso considerada “perverso polimorfa”. Ou seja, ninguém “nasce” heterossexual, ou homossexual, ou bissexual. Nasce apenas com essa pulsãoque vai levá-lo a escolher depois seus objetos por um ato de vontade. E nossa vontade, nosso querer, como já foi também amplamente afirmado, é movida tanto por nossos valores e nossa razão quanto por nossos impulsos e nosso desejo. Por isso varia de sujeito para sujeito, de acordo com as diferenças de sua formação, as circunstâncias de seu desenvolvimento, as identificações, projeções, alienações, recalques vividos etc. A direção do desejo de cada um vai ser singular e única, diferenciada e marcada por sua história pessoal. E todo sujeito pode tornar-se homo ou hetero em qualquer momento de sua vida.

Advogado – E isso tem influência em sua conduta, em seus atos futuros?

Doutora –Também não de forma simples ou linear, e muito menos pré-determinada, como quer fazer crer o Snr. Promotor. O que acontece é que todos nós vemos a realidade com os olhos das experiências vividas e as lembranças de ações passadas. O cotidiano, sempre redescoberto, tem por bússola e guia os mapas de caminhos percorridos. A memória é um fator crucial nas futuras ações de todo ser humano. Em sua busca de companhia, de afeto, das relações a que todo ser humano tem direito, as experiências vividas pelo Réu deixaram fundas marcas. Marcas que explicam a reação instintiva que teve ao ver-se agredido: primeiro, uma reação de afastamento e fuga – a mais habitual em quem vive seguidamente a rejeição, depois tentando acalmar o agressor com palavras, e por fim de defesa, usando os meios a seu alcance.

Advogado – Sem mais perguntas. Obrigado, Doutora.

Juiz – Podemos passar às considerações finais.

Promotor – Meretíssimo, Snrs. Jurados, de minha parte nada mais tenho a  acrescentar. A Moral, as Leis, a Justiça, a Religião são muito claras quando dizem: “Não matarás”! É um interdito que não se pode querer escamotear com palavras vãs e discursos ocos. Por tudo que ouvimos o Réu é culpado de homicídio doloso qualificado, e por tal peço que seja condenado a 30 anos de prisão, sem direito a condicional.

Advogado – Há décadas nossa sociedade vem lutando para abolir preconceitos que, como a palavra mesma diz, são idéias pré-concebidas, sem fundamento, que não resistem a uma análise inteligente. E que tiveram farto exemplo em todas as colocações feitas aqui pelo Sr. Promotor. Outra será, temos certeza, a visão do Júri. Se o Direito considera os elementos internos (como a intenção, o desejo, os aspectos emocionais) é para levar em conta em que medida esses elementos concorreram para a prática de atos externos. Ou seja, o Direito não pode deixar de ser ético. E Ética é a responsabilidade para com o Outro, é perceber e buscar entender o ponto de vista do Outro, é aceitar o outro enquanto Outro, igual e diferente. Estou certo de que o Júri terá esse comportamento ético, levando em consideração todas as circunstâncias apontadas, desde a injusta provocação da vítima até o estado emocional em que se deu a reação do Réu. Pois só assim conseguiremos que se faça Justiça, e que possamos um dia chegar à sociedade mais aberta, mais livre e mais solidária que todos nós desejamos.

             Corte breve, reabre com Juiz dirigindo-se ao representante do Júri:

Juiz- Os Snrs. Jurados chegaram a um veredicto?

        – Chegamos, Meretíssimo. Homicídio culposo, sem intenção de matar.

Juiz – Então, pelo Artigo 121 do Código Penal, o Réu está condenado a 15 anos de prisão, sem direito a condicional nos cinco primeiros anos.         

           De seu lugar o Réu se volta, em pânico crescente, para o Advogado:

Réu – Dr. Paulo, entendo que é justo que me condenem pela morte dele, mas, pelo amor de Deus, peça para não deixar que me botem num presídio masculino, numa cela com um bando de homens que pensam como esse Promotor, que eu já sei o que vou passar com eles, sei que vão me surrar, vão acabar comigo, vão…

Advogado – Sim, mas… você não pode ir para um presídio feminino.

Réu – Pelo amor de Deus, fale com o Juiz, fale com ele, explique… ou me mate de uma vez, eu prefiro morrer, eu não vou aguentar, eu não posso, eu …

Advogado – Calma. Eu vou falar com o Juiz. (para ele) Meretísimo, pode me conceder um instante?

Juiz – Sim. O que deseja?

          O Advogado se aproxima dele e lhe fala em voz baixa, foco marcando atrás o rosto ansioso do Réu.

Juiz – (erguendo-se) O que quer é impossível, Doutor. Não existe um “presídio especial” para travestis e gays.

Advogado – Mas ele pode ficar em cela separada, como os que têm curso superior. Isto é possível!

Juiz – (irônico) E ele é formado em que? Na “universidade da vida”?

Advogado – A lei não pode ser inflexível e desumana. Ela tem de ser interpretada para indicar o caminho mais certo, para…

Juiz– (corta) – Quer me dar lições, Doutor? Faça concurso e venha para o meu lugar. Enquanto isso não acontece, não há o que discutir: pela lei ele é um cidadão do sexo masculino e como tal será por mim tratado.

– E se acontecer o que ele teme… senhor responde pelas consequências?

       

Corte de luz. Reabre com alguém entrando em outro lugar onde agora está o Advogado:

Dr. Paulo! Dr. Paulo! O travesti… Aconteceu! Aconteceu o que ele temia! Assim que foi posto na cela com uns 30 caras partiram todos pra cima dele! E ele foi agredido, xingado, estuprado, espancado, e acabaram enfiando nele um cabo de vassoura que arrebentou ele todo por dentro! Hemorragia interna! Morreu a caminho do hospital!

Advogado (revoltado) – Ele sabia que isso ia acontecer! Sabia que seria brutalizado até a morte! Um assassinato!

  1. Vira-se para a platéia

E deste assassinato, quem é culpado? O Juiz, os jurados, os presidiários… ou toda a sociedade, com seus preconceitos e sua in-diferença?…

 

         Luz se fecha em resistência sobre sua figura imóvel e sua pergunta.