Faltam em nossa literatura dramática e nas encenações em cartaz em nossos palcos peças que tenham por tema e personagens a velhice e os idosos, embora o público de terceira idade seja hoje reconhecidamente predominante em nossos teatros.

Daí essa peça, tratando o tema com um enfoque amplo, que vai dos conceitos e sugestões de Simone de Beauvoir em seu famoso livro La Vieillesse ao universo da cultura popular, com sua visão de mundo enraizada em um cotidiano feito de resistência e persistência, de enfrentamento das adversidades e mudanças da vida com um constante apelo à experiência e à razão, ao sentimento e emoção, ao riso e ao humor crítico. A Autora é também a tradutora do livro “Ganhei mais vida!” (Une Vie en plus) de Dominique Signoret (Ed. Bertrand Brasil), que enfoca por três ângulos (o biológico, o psíquico e o social) os 20 anos a mais que a Ciência já obteve para a média de vida atual em todo o mundo.

A encenação prevista terá elenco formado por um Ator e uma Atriz com longa experiência de palco, e preocupados sempre em ver e mostrar o mundo e a vida sob pontos de vista diferentes, visando à sociedade mais aberta e solidária com que todos sonhamos.

E o trabalho, embora possa interessar a platéias de todas as idades e de todas as camadas sociais, é especialmente dedicado a essa faixa etária cujo percentual cresceu tanto em nossa população, como em todas as partes do mundo.

 

 

                      COMO DEUS QUER OU COMO O DIABO GOSTA ?

                                         

Um quarto pobre, só com uma cama de casal ou colchão no chão, uma cômoda ou cabideiro. Telão ao fundo, onde serão feitas projeções, enriquecendo a cena. As projeções serão sempre citações de filmes de Chaplin, de Fellini, de Bergman que têm  por tema o circo, recortados de modo a ilustrar as situações lembradas.

 

Ele sentado, tranquilo, lendo jornal. Ela entra, furiosa:

Ela – Ah! Isso precisa de uma resposta! Não pode ficar assim! Não vai ficar assim!

Ele – Que foi que houve?

Ela – De novo a mesma coisa! É humilhante! Machuca! Magoa! (desorientada) Eu tenho que…  eu tenho que……Eu vou achar uma resposta!-

Ele – Calma,  mulher… O que foi que aconteceu? Me diz!

Ela (sem responder) – O pior é que… é verdade. Mas… eu não sei…eu não acho que… eu não…

Ele – (segurando-a pelos ombros) Quer me dizer o que “é verdade”, mas precisa de “uma resposta”?

Ela – (depois de uma pausa, com dificuldade) – É minha filha… nossa filha… Me viu alisando minha roupa de bailarina…parou e disse: “Por que você não joga essa porcaria fora? Fica só ocupando espaço no armário!” E quando eu disse: “Eu guardo, que talvez ela ainda possa servir para…” Nem esperou eu acabar de falar e gritou: “Servir pra quê, mãe! Pára de  inventar coisa! Pára com essa mania de se meter onde não é chamada! Você tem que entender que está velha e velho tem mais é que ficar sossegado no seu canto! Velho serve é pra tomar conta de neto quando é preciso! E só!”

Ele – E você ainda liga pras besteiras que ela diz? Ela é uma egoísta, só pensa no que serve pra ela!

Ela – Por qualquer coisinha ela vem lembrar que eu estou velha… e que estou demais aqui…O pior é que eu estou velha mesmo… Eu me sinto velha… Mas quando pego essa roupa… eu fico lembrando…Era tão bonito…( Encosta a roupa de bailarina sobre o próprio corpo, a luz vai mudando para um azulado de sonho ou devaneio.) E não foi fácil… A vida no circo era um bocado dura… Não foi nada fácil virar equilibrista… Tive que treinar muito… (No telão, imagens do que ela vai descrevendo: uma equilibrista, o público…) Aquele fio lá no alto… eu com a sombrinha, caminhando…um pé…outro pé… Não podia cair! E lá de cima eu via o público, parado, todos de olhos grudados em mim, sem nem respirar… E eu vinha vindo… um pé… outro pé… Parecia que o mundo ficava pequeno e que lá de cima eu governava tudo, eu que mandava no olhar, no respirar, ou que mandava todo mundo ficar ali, parado, imóvel… Quando eu chegava no final, cumprimentava, baixando a sombrinha… e o circo quase vinha abaixo de tanta palma!

Ele – Você era mesmo a estrela do circo!  Por isso que eu me apaixonei por você…

                                         Luz retorna à de antes.

Ela – A vida no circo era dura… Mas eu era feliz… Agora… (Num rompante súbito) Vam’bora daqui! Eu não quero mais morar com eles, não quero depender de filho… É muito sofrido!

Ele – E viver de que, mulher? Nossa aposentadoria não…

Ela – (corta) Viver do que der… como puder! A gente não precisa de muito, sabe viver com o pouco que tem… Até fome já passamos, não ia ser novidade…

Ele – Só se eu voltasse ser camelô. Que camelô pode ter qualquer idade.

Ela – Verdade. Você foi mesmo camelô quando novo, não foi?

Ele – E era bom! Vendia tudo!

Ela – O que é que você vendia? Relógio de pulso? Carteira? Pente e baton?

Ele – Não! Vendia ventilador, desentupidor, consolo…

Ela – Eu, hein! Nunca vi camelô vendendo ventilador, desentupidor… e muito menos consolo!

Ele – É que você nunca precisou do que eu vendia. Mas quando eu anunciava: (tom) Ventilador de calcinha pra xereca afogueada! Desentupidor de tripa pra intestino com preguiça! Consolo pra viúva ainda cheia de memória! Pílula japonesa pra levantar o… (gesto) que tá caído! Prótese de porcelana pra homem sem serventia!…

Você precisava ver: chovia freguês!

Ela – Você só vendia coisas desse tipo, coisas lá pras… partes baixas?

Ele – É o que tem mais saída! Você nem imagina!

Ela – Nossa! Não sabia que tinha tanto homem brocha por aí… nem tanta mulher a perigo!

Ele – Mas eu não ficava só lá nos países baixos, não. Também tinha pomada pra testa…

Ela – Pomada pra testa…?

Ele – É. Pra aliviar dor de corno.

Ela – E quem é que tem coragem de sair comprando isso assim, à vista dos outros, passando atestado de…

Ele – Ninguém compra pra si, mas adora levar pro vizinho, pro colega de trabalho, só de sacanagem… Não conhece aquele cordel que diz:

                                                 Se cabeça fosse canteiro

                                                 e chifre fosse jasmim

                                                 nem precisava regar:

                                                 muita gente por aqui

                                                 tinha virado jardim!

Ela (rindo) – Você devia ser um bom camelô mesmo. É bom de papo. Convence… E continua um palhaço também!…(No telão, close do rosto de um palhaço) Eu chego aqui fumegando de raiva…  e num instante já tá me fazendo rir!

Ele – De palhaço eu fiz a alegria de muita gente! E tudo que gente que nem nós, gente que tem alma de artista quer é isso: é dar alegria pros outros!

Ela – Alma de artista…  (sai imagem da tela) Eu fui… Fui bailarina, equilibrista, atriz do teatro… Cada drama de fazer todo mundo chorar… E agora, o que é que eu sou? Sou essa velha sem serventia pra nada. Uma velha que a própria filha acha que é um traste que tem mais é que botar no canto pra não atrapalhar quem anda!

Ele – Pára com esse negócio de velhice! Seu problema não é a idade, é se sentir velha!

Ela – Mas a idade chega mesmo… E com ela a saúde fica pior, a memória começa a falhar…

Ele – Hoje a Ciência tem remédios e caminhos que já deram 20 anos mais de vida pra todo mundo! E dizem que daqui mais um pouco fazer 100 anos não vai ser surpresa nem novidade!

Ela – Ah, falar é fácil…

Ele – Escuta uma coisa: se você saísse andando pela rua e em vez de olhar pra frente ficasse olhando só pra trás, o que ia acontecer?

Ela – Sei lá… Dava com a cara num poste… ou enfiava o pé num buraco e caía…

Ele – Então pára com esse eu fui, eu fiz, só olhando pra trás, pro passado! Sabe qual era o tempo de vida na época dos romanos? Eu li outro dia: 20 anos!

Ela – Só 20 anos…?!…Tão pouca vida?

Ele – E até o século 17 – só (contando nos dedos à frente dela) só 1,2,3 séculos antes de nós, a média de vida era de 27 anos!

Ela – Que nem esses artistas do rock hoje: morre tudo drogado aos 27 anos

Ele – Por essa conta nós já vivemos 2 vezes, já vivemos duas vidas! Então você vê que isso de se agarrar na idade é besteira: cada idade é o que você faz dela. Os homens que mandavam no mundo no século passado – Mao-Tse-tung, Stalin, Churchill, Salazar, De Gaulle, Ho Chi Min e não sei quantos mais todos tinham mais de 80 anos!

Ela – Mais de 80?!…É mesmo? Não sabia… Ah, mas você não pode negar que com a velhice a gente vai perdendo muita coisa: perde o ânimo, o entusiasmo, perde a força pra meter a cara e enfrentar o que der e vier!

Ele – E ganha experiência, ganha sabedoria, ganha mais serenidade pra não fazer as coisas sem pensar, pra não sair mergulhando de cabeça em água rasa!

Ela – Mas eu sinto falta. Sinto falta de minha disposição de encarar os desafios, sinto falta de muitas coisas… Até da aparência jovem e bonita que eu tinha.

                Passagem rápida da imagem da bailarina no telão marca sua lembrança.

Ele – Sentir  falta faz parte de todo vivente em qualquer idade e condição. O cachorro vira-lata na rua sente falta de um dono que lhe dê teto e comida. O passarinho na gaiola tem abrigo e alpiste, mas sente falta da liberdade.  Também não existe ser humano que não sinta ou não tenha sentido falta de alguma coisa. O pobre sente falta de uma sobrevivência garantida e segura. O rico sente falta de amizade sincera porque a maioria só vê na cara dele um cifrão a explorar. (Empolgando-se cada vez mais) A falta existe em todo ser vivo. Mas é a falta que faz nascer o desejo. O desejo que diz de que você sente falta, de que você precisa, desejo que mostra o que é mais importante na sua vida! É da falta que nasce o desejo de preencher o que tá te faltando! Então é da falta que surge tudo que existe, tudo que se criou no mundo!

Ela – Eita! Falou bonito! Mais um discurso desses,  e você vira deputado.

Ele – Epa! Tá me elogiando ou tá me xingando?

Ela – Ué, chamar de deputado é xingamento?

Ele – Pode ser: que de de-puta pra da-puta é uma letrinha, é só um passo. Que muitos por aí já ’tão dando…

Ela – Isso é verdade. Mas cuidado, que se alguém te ouve…

Ele – Eu digo que é brincadeira de palhaço. Se bem que em todos os tempos foram sempre os palhaços, os bufões, os bobos da corte os que, brincando, diziam toda  verdade, até aos reis.

                Passagem rápida de cena com palhaços no telão ilustra.

Ele – Mas se estamos falando em dar um passo – que não precisa ser igual ao deles – vamos ao nosso: independência! Não é esse o seu desejo, não é isso que você quer? Que nós queremos! Então… tá decidido! Bola pra frente!

Ela (susto) – Espera !… Tem que ver… Procurar primeiro pra onde ir…

Ele – Isso se acha fácil. No circo a gente ia de um lado pro outro, dormia em vagão trem, em trailer, em pensão, acampando na estrada, onde dava!

Ela – Eu sei, mas agora…

Ele – Você continua sendo uma equilibrista! E o fio da Vida é mais firme e mais forte que aquele em que você andava!

Ela (de lado) – Mas não tem rede em baixo se cair…

 Ele (sem ouvi-la) – Vamos arrumar nossas coisas… que são tão poucas que isso pode ser feito rápido, rápido!

                                                           Sai.

Ela (sozinha, cada vez mais ansiosa) – Independência… como? A História mesma diz: Independência … ou morte!

               Por ver: no telão o famoso quadro de Pedro Américo, se acaso.

 Independência ou morte. Ou morte… É um risco… Aqui não é bom, mas é seguro. (tentando convencer a si mesma) Minha filha… falou sem pensar. É o jeito dela, sair falando assim… Mas eu sei que ela não me deseja mal. Vai ver ela acha que… que é assim que eu vou ter paz, tranquilidade… depois de tudo que eu já passei na vida… É isso… Vai ver é isso que ela pensou…

                            Ele volta com uma grande mala e põe diante dela.

Ela (estranhando) – Que… qu’é isso?

Ele – Meu órgão. Esqueceu do meu órgão?

Ela – (confusa) Seu… seu órgão? (olhando-o de cima a baixo) Mas… mas  seu órgão não é tão grande precise carregar em mala. Eu conheço ele. E é bem… (gesto de “pequenininho” com a mão)

Ele – (ofendido) Não é desse órgão que eu tô falando. É do órgão que se toca – quer dizer, o meu também se toca, mas…  esse aqui é o que se toca música!

Ela – Ah! O acordeão! Tava esquecendo! Você falou “meu órgão”, eu pensei…

Ele – (corta, seco) Não precisa dizer o que pensou. E suas observações sobre ele também não me interessam.

Ela – Sei. Olha, desculpa. Eu só queria saber… pra onde é que nós vamos. Que quando o circo foi vendido a gente veio pra cá porque não tinha pra onde ir!

Ele – Tem uma pensão aqui perto, muito boa. O quarto é bem barato.

Ela – Um quarto não é uma casa.

Ele – E o que é que nós temos aqui? Um quarto na casa deles. Que cobram o que nós comemos. E ainda nos jogam na cara que estamos morando de favor.

Ela – E como é que nós vamos comer? Que no quarto não se cozinha. E com comida a pensão é mais cara.

Ele – Nós somos urubus, esqueceu?

Ela – Nós… urubus? Eu sei que você é Flamengo…

Ele –– Incondicional!

Ela -… mas daí a ser urubu eu não entendi a relação.

Ele – Você não conhece a história do urubu?

Ela – Não.

Ele – Já que você faz essa cara de “me conte” eu vou contar.

                      Ela senta na beira da cama e ele conta pra ela e pra platéia.

   Luz dá o clima. No telão, ilustrando, close de um urubu, asas abertas, em pleno vôo.

Ele – Era uma vez um tal de Dom Urubu, que todos chamavam de Rei dos Ares. Um dia, quando ele ia no mais sereno do vôo, baixou de repente uma tempestade daquelas! Era tanta chuva que parecia que o mundo vinha abaixo! O urubu foi avoando que nem um corisco e pousou no telhado de uma casa velha. E ficou de lá assuntando pra ver como é que os outros bichos iam se arranjar, se ele, que era o Rei dos Ares, não estava tendo onde se esconder. Aí viu um bando de pombas fugindo, (no telão, pombos em revoada) que logo se meteram no pombal. E o Urubu pensou: “Hum… É ali que elas moram. Deixa vir o Sol que eu também vou fazer minha casa”. Depois passou uma carreira de andorinhas (no telão, andorinhas em carreira, voando) que ele seguiu com a vista e foram se enfiar na beirada do telhado. O urubu falou: “Hum, ali que elas se abrigam, ali que é a casa delas. Eu também vou fazer uma casa pra mim”. Aí passaram umas cambaxirras, se enfiaram num buraco do muro e ficaram lá, bem quietinhas (no telão, cambaxirras aninhadas, olhando). O Urubu só olhando: “Ah, elas têm essa casa. É, acho que eu também tenho que fazer uma casa pra mim”. E a chuva caindo forte, e o vento assobiando, danado de brabo. Os trabalhadores vieram correndo do campo e se meteram na casa onde o Urubu estava em cima do telhado, mais molhado que um pinto pelado e jurando que, quando o Sol saísse, ele ia fazer sua casa.

Aí veio o Sol. Ele sacudiu as asas, voou pra esquentar o corpo e, quando se viu bem enxuto, foi pelos ares rindo dos outros pássaros que não conseguiam chegar no alto onde ele ia. Uma cambaxirra que tinha escutado ele prometer que ia ter casa perguntou: “Dom Urubu, quando é que o senhor vai começar sua casa?” Ele deu uma risada e respondeu: “Quem tem asa para que precisa de casa?”…

                            Reversão de luz. Imagem some da tela.

Ela Quem tem asa não precisa de casa. Mas é por isso que o urubu até hoje não tem casa. E eu… se há uma coisa que no vaivém da vida eu sempre desejei foi um dia ter casa. A minha casa.

Ele – A gente chega lá.

Ela – Mas saindo daqui já… E assim… Sei não… Será que não era melhor…

Ele (num repente) – Me faz um favor? Deita aí na cama.

Ela – Hein?…Deitar? Pra que?

Ele – Tô com uma dúvida que eu quero esclarecer.

Ela – Uma dúvida? Que dúvida?

Ele – Você vai ver.

                               Ela ergue os ombros, duvidosa, e se deita.

Ele – Faz de conta que uma noite você tá aí, bem dormindo, e cai uma tempestade. Chuva que não acaba mais!

Ela – Outra tempestade? Eta dia chuvoso!

Ele (sem ligar pra interrupção) – E aí você descobre que tem uma goteira no teto. E que começou a pingar na sua barriga: (faz os pingos) tum…tum…tum…A pingar seguido, sem parar…Tum…tum…tum…

Ela – Tá… Tô sentindo os pingos. E daí?

Ele – Aí você não consegue mais dormir. E então você levanta, pega uma bacia (pode, se acaso, pegar uma), se deita de novo, põe a bacia em cima da barriga pra aparar a goteira. E a água na bacia vai subindo, vai subindo…

Ela – Ô, tá maluco! Eu não sou burra, não! Se a água vai subindo desse jeito acaba enchendo a bacia, derramando pela cama, me encharcando toda…

Ele – Hum… Como você não é burra, o que é que você faz?

Ela – Eu puxo a cama, mudo a cama de lugar, e mudo junto. É só mudar de lugar e pronto! A bacia fica lá, enchendo sozinha…

Ele – Falou e disse!

Ela (surpresa) – Hein?…Que foi que eu disse?

Ele – A palavra-chave: mudar. A solução do problema: mudar!

Ela – Mudar o que? Mudar a cama de lugar?

Ele – Não. Mudar o que for preciso. A vida toda, mesmo sem ter tempestade, vão pingando em cima da gente cobranças, invejas, ódios, mágoas, ressentimentos, lembranças ruins… A gente pensa que é só uma goteira, que são só uns pinguinhos que a bacia do coração pode aparar… E a gente vai carregando, carregando, e de gota em gota essa água vai subindo, subindo, até que, sem a gente se dar conta, vai afogando tudo em volta e estragando tudo de bom junto.

Ela (Pensativa. Pausa) – Hum… Então…tem que jogar essa…essa “água” ruim toda fora? Ah, mas isso fica muito metido dentro da gente. Tem jeito, não.

Ele – Como não? É só aprender com a Natureza. Como é que a Natureza ensinou nosso corpo a fazer? A gente come, bota pra dentro o alimento. Aí o corpo começa a agir: separa o que vai nutrir, o que vai fazer ele crescer, ter saúde, e o resto… o que não presta, é bosta, excremento, merda, que o corpo bota pra fora!

Ela – Mas você não conhece o ditado que fala do perigo de jogar fora a criança com a água do banho?

Ele – Pra isso a gente pensa, reflete, compara: é isso que a idade e a experiência ensinam a fazer. Ensinam a ver o que é preciso mudar. Ensinam a não ter medo de mudança. A não ir pela cabeça dessa raça de mente acanhada que em tudo vê perigo e ameaça. Você mesma sempre foi assim. E já fez isso muitas vezes.

            Na tela, imagem dela tirando lenço da cabeça e soltando os cabelos ao vento.

                                    Ela “se vê”, enquanto ele continua.

EleE tem que fazer tudo na vida antes de morrer. Que depois de morrer, já viu, não faz mais nada.

Ela – Mudança… Deixando tudo pra trás?

Ele – Não! Deixar o que não importa. Que o mais importante é o que vai dentro da gente. Aliás, nisso nós dois temos uma vantagem: na nossa vida aprendemos a não ser apegados às coisas, já sabemos que roupas, móveis, objetos, essa tralha toda a que muita gente se agarra, não são a coisa mais importante, que não é isso que faz a vida. E isso facilita pra nós: é menos carga pra carregar.

Ela – Lá isso é verdade… Nem desses móveis nós precisamos: o quarto da pensão vem com móveis, não vem?

Ele – Com certeza.

                                Ela pára, ainda meio hesitante, olhando em torno.

EleOlha, eu sei que toda mudança é difícil, que às vezes as dúvidas, as perguntas são muitas, que a gente fica inseguro, parece que a vida toda tá balançando por um fio, na corda bamba. Mas depois que se consegue… você sabe isso melhor que ninguém, a gente vê que valeu a pena, se sente novo, renovado, sente que enviveceu! Você vai ver!

Ela – Ah, sabe que mais? Tá bem! Vamos nessa! E seja o que Deus quiser!

Ele – Viva! Vamos! ( vem pra ela,cantando) E se alguém perguntar por mim

                                                                       Diz eu fui por aí

                                                                       Com meu acordeão debaixo do braço…

  Lembra dessa música? Quando eu cantei ela no programa de calouros do Ari       

  Barroso fui aplaudido à beça!

Ela – Hum… É o que você conta… Mas com essa voz acho que levou foi gongo!

Ele – Que o quê! Queriam até me chamar pra ser cantor da rádio!

Ela – Sei… Isso é verdade?

Ele – Se não é, podia ser… (volta a cantar) Em qualquer esquina eu paro

                                                                     Em qualquer botequim eu bebo

                                                                     E se houver motivo

                                                                     É mais um samba que eu faço…

                                           (ela entra e cantam juntos, um olhando para o outro )

                                                                     Se quiserem saber se eu volto

                                                                     Diga que sim

                                                                     Mas só depois que a saudade

                                                                     se afastar de mim  (bis)…

                                   Riem, se abraçam.

 Luz desce à penumbra para a “mudança.” Para o público não pensar que acabou fica o vulto dos dois virando a colcha da cama, trocando a posição das peças pra fazer um novo cenário. Reabre em seguida, com ela deitada na cama e ele zanzando de um lado pro outro. Ela se reergue a meio na cama e o observa sem ele perceber, até que:

 

Ela – Por que é que tá fazendo quilometragem de um lado pro outro? Perdeu o sono?

Ele – Não. Achei uma idéia. E tô aqui conversando com ela.

Ela – Uma idéia? Qual é a idéia?

Ele – Inda é segredo.

Ela – Segredo…? Pra mim? (Ofendida) Ah, muito obrigada!

Ele – Vamos ver se consigo te explicar. É o seguinte: a gente tava cansado da lida, da luta – que a gente já passou o diabo, nossa vida nunca foi moleza.

Ela – Isso não é novidade pra mim.

Ele – Aí você decidiu ir morar com a filha. Isso não chegou a ser um erro. Mas em seguida a gente cometeu um erro brabo!

Ela – Um erro brabo? O que foi?

Ele – A gente parou. A gente se isolou. A gente se fechou pro mundo.

Ela – Mas o cansaço, a idade, faz a gente parar mesmo…

Ele – Não bota a culpa na idade! Todo mundo quer ser valorizado, ser querido, ser amado pelos outros – que o amor é a semente da vida. Amar e se sentir amado, sem essa semente nada cresce.

Ela – Eu sei.

Ele – Mas se você se esquece dos outros, se esquece do mundo, vai também ficando esquecido, largado, sozinho. Que quem vai lhe dar valor se você mesmo não se valoriza, se apaga, se esquece a vida, o mundo, os outros? O livro da vida se escreve é na união, pensando junto, agindo junto.

Ela – Mas o que é que a gente pode fazer, na nossa idade, e com pouco dinheiro?

Ele – Dinheiro não é tudo! A gente tá numa sociedade besta, que só pensa em dinheiro: abre um jornal, liga o rádio ou a TV e lá vem notícia de que a economia tá assim, tá assado, que os bancos, que os investimentos, a bolsa de valores… Parece que é só o que conta. Mas essa dinheirama toda rolando não impediu a desigualdade, a miséria, a fome, as desgraças, não impediu que só uns poucos metessem o pé em cima de tudo e pegasse tudo só pra eles! E a maior parte ficasse excluído, ficasse de fora!

Ela – Então o que é que gente que nem nós pode fazer? 

Ele – Lembra o que a gente tava conversando outro dia? Que tudo começa no desejo, no sonho. A gente olha em volta, vê onde tem uma brecha, olha o que outros fizeram, consulta a própria experiência pra saber do que é capaz de fazer e… vai em frente!

Ela – Lembra o tempo em que eu fui vidente? Deu muito certo… As pessoas adoravam… E o que eu fazia era isso mesmo… Botava aquele turbante… a bola de cristal na frente…

               Luz muda. No telão, foco na imagem descrita dando o clima da cena. Ela

                      continua de cá, envolvida em sua lembrança:

Ela E os clientes vinham chegando… A garota que queria saber se ia conquistar o cara que ela tava de olho… O cara que ‘tava buscando emprego… O outro que ‘tava esperando uma promoção no trabalho… Eu ia perguntando, perguntando, cada um que falava eu ouvia qual era o seu sonho, o seu desejo… e qual era o seu medo, a sua dúvida…Eu ouvia, ouvia, e ia pensando junto, sem eles sentir… Que nem um que chegou perguntando se devia casar ou não. Que ele achava bom o casamento, gostava da menina, mas tinha medo de ficar preso, que uma mulher só pro resto da vida era como passar com dieta de arroz e feijão no almoço e no jantar a vida toda, ele ia acabar enjoando… Aí eu perguntei pra ele: entre o bom e o melhor, qual ele escolhia? É claro que ele escolheu o melhor. E eu disse: então, pra você, casamento é bom, nas não casar é melhor. (sorrindo) Na realidade não era bola de cristal nenhuma que dizia nada. Muitas vezes era só minha intuição. Mas eu garantia que, se eles se empenhassem, o desejo deles ia dar certo, que eu via na bola que a sorte tava a favor! E isso criava neles uma alma nova, uma fé, uma confiança em si mesmo, uma certeza que empurrava eles pra frente e fazia chegar onde queriam! Muitos vinham me agradecer depois…

                                           Luz volta à real.

Ele – Mais vale a fé que o pau da barca, diz o povo. Se a gente puxa o remo com gana, com fé e com força, o barco vai adiante!

Ela (num repente) – E você, não quer ser meu cliente? Quem sabe eu vejo seu futuro.                                    

            No telão (fade in) voltando a imagem da vidente. Luz dá o clima.

Ela  ( pra ele, pose, tom) – Pode começar a perguntar: o que o senhor quer saber?

Ele (entrando no jogo) – Eu estou numa encruzilhada, num momento de decisão, que pode mudar o rumo de minha vida…

Ela – O senhor está mesmo num momento difícil. Acaba de passar por uma separação…

Ele – Foi. De minha filha. Doeu, mas acho que ela já superou.

Ela – Com certeza. Tô vendo aqui que ela até ficou aliviada. E agora o snr. quer entrar num empreendimento novo. E precisa saber se vai ter sucesso.

Ele – Sucesso é coisa que ninguém pode garantir. Todo empreendimento novo é um desafio.

Ela – E… o snr. tem recursos pra enfrentar esse desafio? O que é que o snr. tá desejando?

Ele – Quero algo que seja uma fonte de interesse, uma forma de me botar em contato com o mundo, com as outras pessoas. Uma atividade que seja um programa de vida.

Ela – Uau!…Não é pouco! Uma fonte de interesse, contato com as pessoas, um programa de vida! Que é que o snr. tá pretendendo? Fazer uma viagem? Procurar alguém? Montar um negócio? Descobrir um tesouro? E como espera conseguir o que quer?

Ele – Eu tenho esperança, mas não fico esperando. Não fico parado. Vou à luta.

Ela – Vai à luta pra que?

Ele – Sua bola de cristal não diz? ( Imagem sumindo em fade out.) Você é que está querendo saber, não é? Então por que não faz uma “consulta” pra você mesma? Pra ganhar aquela “alma nova”, aquela fé e confiança em si que agora ‘tão te faltando?

Ela (Pausa)- Talvez. Acho que ‘tão me faltando, sim. Hoje mesmo eu tive um sonho ruim, um pesadelo daqueles: sonhei… com a Velha da Foice. Com a Morte.

                                Talvez passagem rápida da figura no telão.

Ele – Sonhar com a morte é sinal de vida. É o que dizem os livros que interpretam os sonhos.

Ela – Sonhar com morte é vida?  Maluquice. Não tem a menor lógica.

Ele – Lógica é uma coisa que inventaram pra convencer das idéias que querem botar na cabeça da gente. A lógica também engana. Tem uns que, quando querem, juntam as idéias de um jeito que torce tudo, só pra enganar.

Ela – Tá é doido! Uma idéia liga com outra, que liga com outra,  tudo bem encadeado. E a gente tem que se guiar é pela cabeça, pela razão.

Ele – Às vezes o coração sabe mais que a razão. E isso de uma idéia puxar outra… não viu o que aconteceu com aquele cara, que por causa da lógica levou um tiro no pé?

Ela – Um tiro no pé? Por causa da lógica? Quem… do que você ‘tá falando?
Ele – Você mesma que me contou. Aquele cara do cabaré da Rio-Bahia, onde você foi dançarina de tango…

                                      Imagem de uma dançando tango no telão.

Ela Ah, na época que a gente ficou separado. É uma época que eu não gosto de lembrar…

Ele – O dono do cabaré era o tal Paco Garcéz, que se dizia argentino de Buenos Aires e quando eu fui lá, morto de saudade, te procurar de novo…

Ela – (emenda rindo)… descobriu que ele era do Piauí e se chamava Raimundo Silva.

Ele – Mas ele tinha mania de fingir sotaque e falar como gringo. Pois foi com ele aquele caso do fazendeiro do interior que um dia chegou no cabaré e ele, pra ser gentil e agradar, foi logo saudando: “Amico mio!” E o sujeito foi prum canto e ficou lá, matutando: por que ele me chamou de mico? Mico é macaco. E o que ele quer dizer com esse mio? Quem mia é gato, gato come rato, rato come queijo, queijo é feito de leite, leite saí da teta da vaca, vaca tem chifre… então esse safado tá me chamando de macaco chifrudo! E pum! deu um tiro no pé dele, que quase deixa ele aleijado.

Ela – (ri, mas logo à tom anterior) Ah, nós ‘tamos falando de vida e morte, de coisas das mais sérias e você vem lembrar esse “causo” maluco!

Ele – Maluco por que? Tudo dentro da maior lógica…

Ela – Tá bom… Você não deixa nunca de ser um palhaço mesmo, de fazer gozação de tudo…

                                         Pausa em silêncio.

Ele – Então, falando sério: você sonhou com o Zé Maria, viu a cara da morte de perto e está impressionada. Mas se a gente fica só pensando na morte aí é que ela chega mais depressa mesmo.  Você lembrou de quando era vidente… e esquece o caso daquele sujeito que foi pedir pra um vidente adivinhar o dia da morte dele.

Ela – O dia da morte?  Essa  consulta nunca me fizeram.

Ele – Aí o adivinho, sem saber o que dizer, respondeu: “Olha, você há de morrer no dia em que vier montado em sua mula na estrada e a mula der três zurros”.

Ela – Três zurros…? Mas o que isso tem a ver com a morte?

Ele – Não sei. Só sei que toda vez que montava na mula ele ia bem atento. Um dia, numa volta da estrada, apareceu um caminhão, a mula se assustou e deu três zurros. O cara se jogou da sela pro chão gritando: Morri! E ficou ali, duro, crente que ‘tava morto. Aí uns trabalhadores que passavam deram com ele estendido e achando que ’tava morto, botaram numa rede pra levar pra casa dele. Chegando numa encruzilhada, um dos que levavam a rede falou: acho que o caminho mais curto pra casa do morto é o da direita. O outro discordou e começaram a discutir. Aí o defunto levantou e gritou: “No tempo que eu era vivo o caminho mais curto era o da esquerda!” Pra quê! Os outros se apavoraram, jogaram a rede com o “defunto” no chão e saíram na disparada. Só que, com a queda, ele bateu com a cabeça numa pedra… e morreu de verdade.

Ela – Ah, então o adivinho acertou! Tá vendo?…Qual… Você e seus “causos”… Vaidade de não deixar nada sem explicação… Mas agora eu que te pego… Você não quer que eu fale de morte, né? Então me diz: quem fez a vida?

Ele – Foi Deus, que é o Criador.

Ela – E quem fez Deus?

Ele ( sem hesitar) – Ora, foi o pai dele.

Ela – Hah! Me explica isso: então há dois Deuses

Ele – Não! Quem é o pai do Dr. Paulo, o médico? Não é “Seu” Matias, o mecânico?

Ela – Não entendi… O que isso tem a ver?

Ele – Tem tudo a ver. O filho é médico, o pai é mecânico. Então o pai de Deus, pode não ser Deus, ter outro ofício.

 Ela Você… Tem jeito, não. É muito palhaço, mesmo…     

Ele– (se aproxima e lhe faz um carinho) – Mas tô gostando de ver que você já está espertando, querendo rebater, querendo provocar… parece que já está gostando de viver de novo.

Ela – Eu ‘tava era cansada mesmo. Mas num güento ficar isolada e parada, catando pulga.  Eu sei que tudo na vida é inconstante, é que nem bunda de criança, cabeça de juiz e palavra de ladrão, nunca se sabe o que vai sair delas, não se pode confiar. Mas a gente tem que descobrir um jeito de ir em frente… mesmo eu tendo ainda um medo do futuro.

Ele – Cada coisa tem seu tempo. Não adianta querer viver antes, querer adivinhar o futuro. Nem sonhar coisas mirabolantes.

Ela – Que nem aquela mulher que ganhou 6 ovos e começou a pensar  que dos 6 ovos iam nascer 6 pintos, que iam virar 6 galinhas, que cada galinha ia botar 6 dúzias de ovos, que ela logo, logo, ia ter 6 galinheiros… e nessa “viagem” já ‘tava se vendo dona de 6 fazendas…

Ele – Tá vendo? Você também conhece “causos”, olha pra experiência alheia. E já sabe que o negócio é encarar o desafio de ir adiante.

Ela – Mesmo sem saber de antemão no que vai dar… Buscando o equilíbrio… Que no fio da vida é como eu de equilibrista… é ir botando um pé, outro pé…devagar…Sem parar, mas também sem histeria de que vai cair.

Ele – Sabe, quando você chegou no circo eu já tinha virado palhaço. Mas antes disso o dono do circo tinha mandado eu ser atirador de facas.

                                No telão sequência vai mostrando um em função.

Ela – Eu sei. Mas sei que você não gosta de lembrar disso.

Ele – Mas também não esqueço o dia que o dono do circo me disse que isso era um número que o povo adorava, que um circo rival dele tinha, e que eu tratasse de ir treinando, senão…

Ela – … o de sempre: se não sabe fazer, rua!

Ele – E sabe quem ele botou pra aparar as facas? A filha do domador. Uma menina. 10 anos de idade.

                                       Cena descrita no telão.

Ele – Eu tinha que rodear ela de facas, bem juntinho do corpo, Se eu errasse… era a vida dela que se ia. Ou um braço. Ou um olho.

Ela – Nossa! Eu não tinha coragem!

Ele – Aí eu me lembrei da história do rico que quis entrar no céu.

Ela – Um rico no céu?  O que tem a ver?

Ele – A Bíblia não diz que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino do céu?

Ela – Sim, mas… e daí?

Ele – Um dia morreu um rico, daqueles bem safados, que enricam fazendo todo tipo de tramóias e de “malfeito“ – como tá na moda dizer agora quando se fala desses “aloprados” que andam fazendo fortuna com toda sorte de bandidagem.

Ela – Hum… Tá cheio deles por aí. Cada dia descobrem mais um.

Ele – Pois um desses morreu e chegou lá céu com a cara mais cínica, aquela cara que eles fazem quando dizem que (tom) “é tudo maldade, perseguição, eu sou inocente!”. São Pedro, que não é bobo, barrou logo a entrada. Aí o ricaço negou tudo que fez, discutiu, brigou, esbravejou, ameaçou, fez voz doce, acusou os inimigos, tudo que eles sempre dizem e fazem… Até que São Pedro ficou sem paciência e lançou um desafio: “Tá bom.Você só entra se descobrir, no meio dos milhões de almas do céu, qual é a alma de Adão”.

Ela – A alma do Adão… Danou-se! Como é que ele ia achar a alma do Adão no meio daquele mundéu de almas?

Ele – Pois ele aceitou o desafio. E saiu olhando as almas, uma por uma… Ia olhando e passando a mão… olhando e passando a mão…

Ela – Conseguiu?…?! Ah, é impossível!

Ele – Calma! Ele tá lá, olhando e passando a mão, olhando e passando a mão… olhando  e passando a mão…

Ela – Ih, já tá me dando nervoso!

Ele – Até que…

Ela – Achou?! Não acredito!

Ele – Ele apontou e disse: é essa!

Ela – E era?!

Ele – Era. Com olho vivo, ele foi andando, observando, atentando pro menor detalhe, apalpando, experimentando… até que achou: Adão é o único que não tem umbigo. Que ele não nasceu de ventre de mulher.

Ela – Essa não!…Eu nunca ia imaginar!… Mas… mas o que é que o umbigo do Adão tem a ver com seu trabalho de atirador de facas?

                                              Imagem de novo no telão.

Ele – Ai, quem ouviu e não aprendeu, bom exemplo não colheu. Tem tudo a ver!  Olho vivo, ficar atento, observar, não perder o menor detalhe, apalpar, experimentar… Foi o que eu fiz. Eu peguei a menina, encostei numa tábua, fiz com giz o  contorno do corpo dela, e todo dia eu ficava horas e horas atirando as facas…que tinham que passar rente à risca mas sem entrar no desenho do corpo!

Ela – Virgem Maria!

Ele – E com isso, graças a Deus, eu nunca errei!

Ela – Puxa, isso é que é desafio! Mas é como você diz: o negócio é encarar. É o que a gente sempre fez na vida.

Ele – Hum… Acho que agora já posso contar qual era a idéia, o “segredo” que fez você ficar ofendida. Agora chegou o momento de ser sincero. E eu vou ser.

Ela – Finalmente! Tô curiosa, doida pra saber o que é!

Ele – Eu me perguntei muito, todos esses dias, procurando uma idéia.

Ela – Eu também tenho pensado muito, mas até agora…

Ele – O que você faria se eu lhe dissesse… que a gente podia fazer teatro?

Ela – Fazer teatro de novo? Mas… nós agora somos só dois.  E você era palhaço, de fazer rir, de brincar, fazer troça e gozação de tudo… e eu fazia drama, de arrancar lágrimas, fazer  o povo todo chorar.

Ele – Então! Vamos fazer essa mistura de riso e choro que é a vida humana. Misturar verdade e invenção, realidade e ilusão, comédia e drama.

Ela – Mas nós dois somos muito diferentes. Cada um tem uma maneira de ser. Isso complica.

Ele – Não! Isso é ótimo! Por isso estamos há tanto tempo juntos: um completa o outro.

Ela – Mas se cada um  vê as coisas de um jeito…

 Ele (emenda) -… cada coisa é mostrada por dois pontos de vista diferentes!  Isso faz enxergar tudo melhor. Fica tudo mais bem visto, mais inteiro.

Ela – E fazer qual peça?

Ele – Nunca ouviu a frase: “Minha vida daria um romance”?

Ela – Muita gente diz mesmo…

Ele – E nós já passamos por tanta coisa na vida que temos muito que contar. Muita gente vai ver, vai ouvir, e vai dizer (diversos tons): “Eu concordo com o que ele disse…” “É assim mesmo,  tal qual ela mostrou”…” Eu também penso assim”…

Ela (emenda) –  “Eu também sinto assim”…”

Ele – ”Isso eu nunca tinha pensado!”

Ela – ”Comigo aconteceu a mesma coisa”…

Ele – E cada um se saiu de um jeito da situação que viveu… Que a beleza da vida é que não há no mundo duas pessoas exatamente iguais, mas todos nós somos seres humanos, todos temos sentimentos, emoções, pensamentos….

Ela – E ora vivemos como Deus quer e manda…

Ele – Ora nos enrolamos e nos perdemos, como o Diabo gosta.

Ela – (Súbito, outro tom) – Mas para montar uma peça tem que ter dinheiro pro aluguel do teatro, e pra pagar cenário, luz, música, figurino…

Ele – Pra isso eu já tenho a solução.

Ela – Já tem? E qual é a solução?

Ele – Já tá resolvido. Eu comecei fazendo… um teatro. Virando um personagem: o Futuro.

Ela – O Futuro? E desde quando o futuro é personagem?

Ele – Você vai ver. Foi assim: antes de ontem, naquela inauguração que houve aqui perto, eu ouvi por acaso o prefeito confidenciando a um amigo uma coisa que me deu uma idéia. Uma idéia que eu botei em prática… e que vai nos dar cobertura pra montar a peça  e ainda viver sossegado um bom tempo.

Ela – Ahn… Falando assim até parece que tirou na loteria.

Ele – Algo parecido. Eu conto o que aconteceu e você imagina a cena.

                Luz muda. Ele dá dois passos, pára e “bate a uma porta”: toc,toc.toc.                          

                                              Ela vem abrir, curiosa.

Ele – Bom dia! É da casa do Snr.Prefeito?

Ela – É.

Ele – E a senhora deve ser D. Minervina, a criada dele, não?

Ela – Sou sim, às suas ordens.

Ele – É o seguinte: o Dr. Prefeito me mandou com um recado: é pra senhora me entregar uma caixa grande que tá na prateleira do armário do quarto dele. Eu tenho que levar pra ele, urgente!

Ela (hesitando) – A caixa… da prateleira…?

Ele – É. Acho que ele disse… na primeira prateleira, a de cima. Não tem lá uma caixa grande?

Ela – Tem, mas…  ele tem muito ciúme daquela caixa. É pra lhe entregar?

Ele – É o que ele mandou. A senhora nunca ouviu ele pegar a caixa e dizer: “Tô guardando pro futuro”?

Ela – É, ele diz isso mesmo.

Ele – Então…? Pro Futuro Ditoso. Que sou eu! É meu apelido!

Ela – Futuro Ditoso. Apelido engraçado…

Ele – É que eu sou um cara “pra frente”, tô sempre alegre, sempre rindo…

Ela – Hum… Então espera aí que eu vou buscar a caixa.

                                             Luz volta  à anterior.

EleE ela me entregou a caixa com todo o dinheiro que ele vem “desviando” na Prefeitura com as falcatruas que faz. Uma nota!

Ela – Mas você… você roubou ele!

Ele – Eu não. Quem roubou foi ele. Roubou de nós, do povo todo. E ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão.

Ela – Mas se ele chama a polícia, ela te descreve, vão te caçar e…

Ele – A polícia vai ficar procurando o ”Futuro Ditoso” e não vai encontrar, é claro. Mas nem tem perigo disso: você acha que o Prefeito vai querer fazer escândalo, vai querer que saibam que ele tinha esse Caixa 2 malocado pra não pagar imposto e com um grana que ele não pode declarar de onde veio?

Ela – Mas eles… (mostra o público) ’tão vendo, ‘tão sabendo, o que vão pensar de nós?

Ele – Vão chamar a gente de ladrão e ficar indignados? Que ótimo! Tomara que fiquem muito indignados mesmo e façam escarcéu e gritem que tem que mandar prender o ladrão, começando com o Prefeito e os da raça dele! Que só quando acabar a impunidade essas coisas vão começar a tomar jeito!

Ela – Verdade. Que só falar não adianta.

Ele – E o Prefeito mesmo não vai dizer nada. Só vai é começar a encher outra caixa de novo.

Ela – E… é muito dinheiro mesmo?

Ele – É o que eu disse: dá pra fazer o teatro que eu quero. E pra gente viver um bom tempo sossegado.

Ela – Nem acredito!

Ele – Pois vai ser. (sonhador) Nosso teatro… Eu estou sentindo falta de ver o riso e a alegria na cara das pessoas…

Ela  – E a emoção, a cara comovida de quem tá sentindo junto com a gente…

Ele – O carinho do público. Esse carinho é tudo que um ator ou atriz precisa. 

Ela – Faz a gente se sentir viva! Dá um gás novo, uma garra… é muito bom!

Ele – (aponta alguém na platéia) – Olha aquela ali, que bonitinha. Já tá até sorrindo pra mim… Se ela casasse comigo eu tirava ela da vida de manicure.

Ela – E quem disse que ela é manicure?

Ele – Se não é, podia ser…

Ela – (repete) Se não é, podia ser… Acho que é o seu lema na vida.

Ele – E é. Que é buscando o que pode ser que se vai tocando a vida em frente. A filosofia do povo é essa: devagar se vai ao longe.

Ela – Podemos começar a peça contando esses últimos tempos, em que a gente descobriu que tava se achando velho e com isso jogando a vida fora, desperdiçando tudo que ainda temos pra viver…

Ele – E aí vimos que a Vida é o maior presente, não pode ser perdida nem desperdiçada. Não vê que quando nasce uma criança é uma festa? E no aniversário, no Natal, a gente vive comemorando o nascimento…

Ela – Mas a criança vem chorando…

Ele – Porque ainda tá no espanto e no encanto de chegar e penduram ela ao contrário e dão palmada nela!

Ela – Pra ela sentir que chegou no mundo e o mundo vai ter disso também.

Ele – Riso e choro, que nem no teatro. Mas a Vida é uma coisa tão bonita, tão boa e importante, que até Deus quis virar Menino pra saber como é ser um vivente humano. Ela – E quando ele chegou, desde os Reis até o boi e o burro foram lá saudar sua chegada à vida.

Ele – Eu garanto que o público de… (nome do local em que estiverem se apresentando)  também vai receber a gente com o maior carinho.

Ela – Aí nós contamos o que aconteceu conosco e damos o recado: quando acontecer com vocês de dar na vida um tropeção que nem o nosso, tem fé e vai em frente

Ele – Vai em frente cantando: Reconhece a queda

                                                e não desanima,

                                                levanta, sacode a poeira

                                                 e dá a volta por cima

Ela – E aí a gente convida todo mundo pra cantar conosco! (Vêm para a boca de cena e “convidam” o povo a cantar junto):

                                                 Reconhece a queda

                                                 e não desanima,

                                                 levanta, sacode a poeira

                                                 e dá a volta por cima!

 Ele – É isso aí! De novo, com mais força!

                       Quando termina o canto, eles, do palco, aplaudem…

JuntosMUITO BEM!

                                                … e são aplaudidos, esperamos.   

                                               

                                                     FIM                                     

              

                         A VIOLÊNCIA INVISÍVEL

          Este texto é baseado em um fato real, trazido por uma jovem já com 19 anos, em uma oficina de teatro realizada em uma comunidade de morro do RJ e fala da experiência de ser mulher, negra e favelada na sociedade em que vivemos. A cena improvisada no laboratório de expressão seria encenada, em outro local, já dramaturgicamente elaborada (o que é parte de meu trabalho) e seria assistida por ela e a mãe, abraçadas, em meio a um público que aplaudia, comovido, aquele “teatro”…Cenas como essa renderiam longos debates, com comentários, associações e narração de outras experiências, com o grupo e, por vezes, com todo o público, em apresentações feitas em diferentes comunidades, pois como formiga carregadeira que sou, sempre levo um trabalho de um lugar para outro.

A mesma cena seria também apresentada no evento “A Violência contra a Mulher”, realizado pelo Centro Calouste Gulbenkian, no RJ, em novembro de 2004. Na ocasião assinalei que, se o ser humano é “o ser da linguagem” (Heidegger), a maior violência cometida contra a Mulher foi silenciá-la ao longo de 2.500 anos. “Uma boca silenciosa e um rosto sempre sereno/ eis o que eu oferecia a meu esposo”, diz, em “As Troianas”, Andrômaca, ressaltando como “modelo” para a mulher grega essa imagem de repressão. E a tese de doutorado da Profª Valéria Souto Maior (SC) mostra que, em pleno século 19, no Brasil, das 52 mulheres que escreviam poesias, contos, romances, peças, apenas 3 (três) não usaram… pseudônimos masculinos.

Silenciar alguém é uma violência – como bem sabem as tiranias quando amordaçam pela Censura todas as bocas, reduzindo populações inteiras ao silêncio. Reduzindo, sim: pois obrigar ao silêncio, seja a que pretexto for, é uma violência que desumaniza, coisifica, transforma o ser humano em objeto, que se busca tornar manipulável ou massificado. Até mesmo o animal tem direito ao grito, a expressar-se, mesmo que não pela palavra, marca humana criadora e desveladora. Resgatar o direito à fala, o direito de expressão é, portanto, resgatar algo que nos define como humanos.

Talvez por essa razão o trabalho de pesquisa-ação realizado na Mangueira, que incluiu esse texto, ao ser mostrado e discutido em Guanajuato, México, no Congresso do CEAAL ( Conselho de Educação de Adultos da América Latina, criado e presidido por Paulo Freire) tenha sido considerado “o melhor trabalho de animação de base da América Latina”.

                                      A VIOLÊNCIA INVISÍVEL

           OBS: Abrindo a apresentação, assinala-se:

1. que ela se baseia em um fato real, trazido em um laboratório de expressão teatral em uma comunidade do RJ;

2. e que representa uma homenagem a todos os que são silenciados, excluídos e marginalizados nesta sociedade classista e racista em que vivemos.

Sala/ quarto de um barraco de favela. Mulher negra, de idade indefinida, sentada. A seu lado, mesa com um copo e uma garrafa. Olhos semicerrados, leve movimento de cabeça, acompanhado de música cantada à boca fechada, mostram que já está meio bêbada.

Súbito abre os olhos, como que pressentindo uma presença: à porta, aberta, silhueta de uma jovem se destaca contra a luz clara do exterior.

             Jovem ( entrando) – Vó…!

A mulher não responde. A Jovem entra, procurando em torno.

            Jovem ( para a Mulher) – Cadê minha avó?

            Mulher ( sem fitá-la) – “ Minha vó… minha vó”… É tudo com ela. Comigo tu nem fala. Seis anos…  Seis   anos que tu não fala comigo….

            Jovem – Minha avó, saiu ?

Mulher ( sempre olhando a distância ) – Seis anos. Sem falar. Passa, não me olha, não fala. Como se eu fosse um traste, uma coisa, um lixo. E eu também não falo, não digo nada. Desde aquela noite…aquela maldita noite…

 A Jovem pára no meio do cômodo, como que surpresa de vê-la falar. Em uma das mãos um papel enrolado em canudo, que começa a bater, indecisa, contra a outra mão.

Mulher – Qu’é isso na tua mão?

            Jovem ( sem olhá-la ) – Hum…? Meu diploma.

 A Mulher desata súbito a rir.

 Mulher – Teu… diploma …

  Seu riso cresce, cresce e se transforma súbito em choro convulso.

 Mulher – Teu diploma! Teu diploma… O diploma…!

 A Jovem, apanhada de surpresa pela contraditória reação, agora   a encara. A outra faz menção de se erguer. Cai sentada de novo. Soergue o busto, choro cessado, mas lágrimas ainda escorrendo. Olhar de súplica.

 MulherSeis anos… No mesmo barraco. E tu olha pra mim como se eu não                               

                 existisse. Desde aquela noite… aquela maldita noite… Mas hoje, só hoje,  

                 posso te dar um abraço?

Luz desce em resistência sobre as duas, paradas, se olhando, 

 olhos nos olhos.

Reabre em sala / bar com decoração cafona. Noite.

A Jovem é agora uma Menina de uns 12 ou 13 anos, entrando. Em seu rosto, estranheza e espanto, observando o ambiente: 3 ou 4 mulheres, em trajes íntimos e provocantes, e detalhes esparsos vão configurando o local e fazendo-a perceber onde de fato está. Uma das mulheres dá por sua presença:

Mulher – Está procurando alguém, menina?

            Menina – ( ainda aturdida) Minha mãe.

            2ª Mulher – Sua mãe? Aqui? Quem é sua mãe?

 Menina – Idalina Silva. Mas aqui…aqui não é  o nº 128, é?

   Uma 3ª  mulher se aproxima.

3a. Mulher – Filha da Lina?…Ora veja! ( grita para dentro) Lina ! Olha   

   quem está aqui !

 As outras agora a cercam,  curiosas e amáveis.

   – Você que é a filha da Lina? Que bonita!

   – Parece com ela.

– Só que ela falando da “filhinha” a gente pensava que você tinha  5 anos !

   – Quantos anos você tem?  

 Surge Lina. Estaca ao ver a filha. Esta a olha, de cima a baixo,

 semi- vestida e maquilada, como as demais.

 Lina – Você…aqui…

 Depois de uma pausa, imóveis, a menina vai engrolando as

 palavras em fala confusa e nervosa.

Menina – Hoje….Teu aniversário…. Juntei dinheiro meses … Pra te fazer uma surpresa…Pra gente ir jantar fora em um lugar bonito no teu aniversário… Procurei o endereço….Você dizia que era…que era faxineira noturna nos escritórios. E é…e é aqui!….Você nunca me disse que era… que era isso… que era isso!

As mulheres se entreolham, percebendo a situação. Uma delas se  aproxima da menina.

3a. Mulher – Calma,  menina.  Olha …

Mas a menina a repele e, em gesto súbito, parte pra cima da mãe, cujo peito agora soca, aos gritos, sem que esta esboce qualquer reação.

Menina – Puta! Puta! PUTA!!…

 As outras tentam segurá-la.

– Pára !

– Qu’é isso!…

– É sua mãe! Respeita!

– É com esse dinheiro que ela te dá de comer !

– Pensa que é fácil nossa profissão?

Lina absolutamente imóvel. Olhar fixo, paralisada.

Afastada e segura pelas outras, a menina agora a encara. Pausa  tensa.

Menina – Minha vó… sabe ?

Lina – (num sussurro inaudível, apenas assente com a cabeça) – Sabe.

 A menina olha para um lado, para o outro, desnorteada e

 indecisa. Uma  das mulheres ainda tenta:

 2a. Mulher – Olha, ainda é cedo. Vocês podem…

A menina se solta com um repelão e sai correndo, porta afora.

Lina esboça um gesto de segui-la. Mas se detém. As outras a

 cercam.

1a Mulher – Isso passa. Com o tempo ela vai entender.

2ª  Mulher –  Esquece, vai         

Lina se dirige com esforço para um canto. Pega um copo e uma

garrafa. Outras tentam segurá-la.

1a  Mulher – Lina…

3ª  Mulher – Não vai tomar porre que hoje é dia de casa cheia!             

 Lina – Me deixa. Hoje eu não trabalho mais.

Corte.

Volta à sala / quarto do barraco.

A mãe, Lina, conseguiu se erguer e, parada diante da filha, hesita, como se temesse ver rejeitado o abraço pedido.

Rosto diante de rosto, se entreolham. Instante longo. Súbito a Jovem, em gesto e decisão repentina, estende para a mãe o canudo enrolado.

Jovem – Meu diploma. Toma.

A mãe pega o canudo, surpresa, e começa a abrir, tateante, como se fosse ler. Mas pára em meio. Pausa.  Silêncio. Que ela quebra, repetindo:

Lina – Teu … diploma…

 Semi-cerra os olhos, e diz, devagar:

 Lina – Teu diploma…  Então… agora…

 Recai na cadeira e desenrola devagar o canudo, mas pára de novo e fala,  quase consigo mesma:

 Lina – …agora… tu vai ter futuro… Vai ser dona do teu nariz… Fazer tua vida… Sem depender de ninguém…

  Recosta-se na cadeira, e fecha os olhos, as lágrimas voltando

  a escorrer. Pausa longa,  em silêncio. 

 

 A filha, que a olhava, agora se aproxima mais e se abaixa junto dela, com  emoção crescente.

 Jovem – Mãe, me perdoa. Eu não tinha o direito de… Eu não tinha o direito                             de…de fazer o que eu fiz… de trancar você neste silêncio… de calar você, de te humilhar desse jeito, te pisar …de fazer com você, aqui, dentro da nossa casa, o mesmo que fazem conosco lá fora. Eu hoje sei. Sei o que é ser mulher, ser negra e favelada neste mundo em que gente vive. Mulher, negra e favelada. Hoje eu sei. E eu não devia, eu não podia… Me perdoa,  mãe…

  Lina estende a mão para o rosto abaixado à sua frente.

 Lina – Mas agora tu tem estudo. Tu vai poder falar… E vão te ouvir….Vai ter um trabalho… vai ter respeito…. Vão te dar valor. 

  Recosta-se na cadeira, e fecha os olhos, as lágrimas ainda

  escorrendo.

 Lina – Tu vai ser gente… Graças a Deus… tu vai ser gente!

             Luz se fecha, em resistência, em foco sobre seu rosto, quase feliz.

 

 

MONÓLOGO PARA UM ATOR
(ou A DESCOBERTA DO OUTRO )
Maria Helena Kühner

“A Descoberta do Outro” nasceu de um fato real: foi escrito para o Ator Jorge Cherques, que, 15 dias após a morte de sua esposa, me comoveu ao pedir que escrevesse para ele um monólogo, pois, deprimido como estava, não conseguia trabalhar em grupo, ficar ouvindo conversas e brincadeiras dos outros, etc. Ficou feliz ao receber o que escrevi. Mas não chegou a encená-lo, como pretendia: morreu dois meses depois. E o monólogo viria a ser estreado em Brasília, pelo ator Ivan Lima, a quem pedimos que, na abertura da peça e no programa, lhe fizesse uma homenagem, uma homenagem ao Ator.
Porque é disso que o monólogo trata: do jogo do ator, sua luta, desde seu contato primeiro, ainda impressentido e exterior, com um personagem, observando-lhe os gestos, o corpo, a voz, a maneira de falar, de se vestir ( que tudo isso fala de alguém, de quem é esse alguém), deixando que ele se torne uma presença. A busca do ator, com seus vetores duplos: entrega/ distância, integração/ observação, viver/ analisar, experimentar/ refletir, elaborando, mergulhando fundo no personagem e voltando à tona, parando para rever o que a intuição o leva a apanhar em seu mergulho, e a razão a seguir lhe mostra em plena luz, para apreender sob outro ponto de vista. Desse jogo, revivido e repensado, a atitude que vai ser tomada em cena pelo Ator – atitude que faz rever/ repensar o próprio sentido do teatro, e, com ele, da vida.

MONÓLOGO PARA UM ATOR
O Ator entra, pára no meio da cena, percorre com o olhar a platéia, devagar, e
inicia:

– Boa noite. Antes de mais nada, quero agradecer sua presença, hoje, aqui. (Pausa) Alguém poderá me dizer o que espera ver e ouvir? Por que escolheram estar aqui e não em outro lugar ?
Escolher, pra mim, sempre foi um problema. Sempre. Porque escolher, decidir, é também discriminar. Ficar com uma só quando o meu impulso sempre foi o de ficar com todas: ora uma me atrai, ora outra, cada qual por uma razão diferente. E ninguém entende porque me é tão difícil a escolha, e porque a exclusão, toda e qualquer exclusão, me é sempre dolorosa.
A mesma coisa em todos os lugares: nas livrarias ou nas bibliotecas, cada livro escolhido traz com sua escolha a lembrança de todos os que ficam nas estantes, à espera de minha necessidade de conhecer todas as interrogações, todas as buscas, todas as respostas, de participar de todas as descobertas. Tão boa, a sensação da descoberta e do encontro, não acham? Então por que a vida assim, pingada em conta-gotas, uma a uma, se é tanta a nossa sede, a sede de mergulhar fundo, de mergulhar o rosto, o corpo todo, sentir a vida entrando por todos os poros?
Acho que foi isso que me levou ao teatro: poder juntar palavra, gesto, ação, emoção, pensamento, e a situação em que tudo acontece, e a cena em que tudo isso é mostrado a alguém, e se cria com esse alguém outro jogo, olho no olho, troca que afaga e acende tudo que há de vivo em nosso interior.
Há tanto em tudo! O ato de comer: uma coisa tão simples. Mas um ato que põe em giro toda a roda, que põe em movimento todo um processo misterioso e incessante… (para alguém em frente) Você já tentou sentir o que acontece quando você mastiga um… um pedaço de pão? Já se pôs, alguma vez, bem atento, a mastigar aquele pedaço de pão, triturando-o nos dentes, sentindo cada pedacinho se dissolver, tornado menor, cada vez menor, a língua trabalhando para arrancar seu sabor e colocar na esteira das sensações para levá-lo ao resto do organismo, e os dentes, engrenagem movida de outro ponto, descendo, subindo, cortando, e a língua, operária inquieta e ágil, selecionando, encaminhando, destruindo, lubrificando essa engrenagem com sua secreção, retirando o gosto, e empurrando o resto adiante… Sem saber que nesse gosto e nesse resto está a terra que nutriu uma semente, e o sol que amarelou o trigo, e a água de todas as nuvens feitas chuva sobre ele, e o sangue do lavrador colhendo dia a dia um pedaço de sua vida e se triturando, grão a grão, para alimento dos outros. O ato de comer, tão simples!, se torna surpreendente quando é assistido por todo o nosso ser. Num ato só, tantos, tanta coisa! Mas também tantas que aí não estão, criando faltas, e a vontade de algo mais. De mais. Mais!
Vocês devem estar se perguntando: … a que vem tudo isso?
A maior parte de vocês talvez tenha vindo buscar apenas… um momento de diversão. E eu saio jogando em cima de vocês essas minhas reflexões… Ora, eu não sou filósofo nem nada. Onde quero chegar?
É que, para mim, tudo começou também com uma escolha: a escolha do personagem de uma peça, a peça que vocês vieram ver. Como eu acabei de contar a vocês, escolher para mim é sempre difícil. Foi o que eu disse ao Diretor: eu sei que é preciso escolher. Mas, para mim, todas as personagens são importantes. Porque, para mim, não há personagens secundárias ou principais, entendem? Todas são importantes. O criado que entra com a bandeja de café: ele se mantém em silêncio, não diz nada. E é por isso que é importante: ninguém o vê porque ele não diz nada. Vocês nunca imaginaram que agonia deve dar a alguém sentir que está presente sem ser uma presença? Se o deixassem falar, como ele falaria! Falar o quê? Ora, falar. Simplesmente falar! Qualquer coisa. Dizer seu nome: as pessoas e as coisas só passam a existir quando recebem um nome… embora haja tanta coisa sem nome ou até indizível andando por dentro da gente. ( Tom se quebra um pouco) … há tanta coisa não-dita andando por dentro da gente… (Pausa. Refaz-se e projeta para fora novamente) Não vêem o que acontece com essas mestras do silêncio e da espera, as mulheres? Elas sabem. Elas sempre souberam.
Taí, sabe que eu gostaria de fazer uma personagem feminina? Gostaria de ser Ariadne, a doadora, a que tira de si o próprio fio e o estende a Teseu para que mate o Minotauro devorador e encontre a saída do labirinto. Do labirinto em que estamos todos vivendo. (Outro tom) Do labirinto em que eu me hoje sinto. (Pausa. Para outro espectador) Por que esta surpresa cheia de malícia? O fato de me verem assim tão masculino, tão seguro de mim mesmo, parecendo tão auto-suficiente, não impede que queira me completar de novo, dar voz a meu lado feminino, a meu outro polo, minha outra metade… (Tom se quebra novamente ) Minha outra metade. Que me faz tanta falta. Mais, muito mais, do que eu consigo dizer. Queria ouvir de novo sua voz, a voz de minha nunca esquecida anima, de minha alma silenciosa, silenciada. Cansei de ter que exibir um masculino equilíbrio e controle, cansei de estar ao leme, olhos secos pelo vento e o sal, na inquietação de sondar horizontes, evitar escolhos, medir a profundidade das águas e o calado do barco. Queria mergulhar naquela água profunda, e dela, e com ela, ver e fazer ver o céu, o sol, as ondas, sentir o balanço do mar, a paisagem, a cor dos astros mais distantes, e trazer de novo as cores de seu arco-íris para a minha vida. Queria…
(Detém-se súbito. Olha em torno. Tom muda)
Estou vendo ironia em alguns olhos. A mesma ironia que vi no rosto do Diretor da peça quando tive com ele a discussão que me levou ao plano que vou por em prática hoje, aqui, agora.
Ouvindo isso – plano, que plano?… – ele já deve estar ficando em pânico lá nos bastidores. Mas não vai conseguir me impedir, porque pensei em todos os detalhes. Ou, quem sabe, talvez ele fique curioso de saber que plano é esse… que loucura eu posso estar inventando… (Para dentro) Loucura…? Loucura por que, Sr. Diretor? Loucura é quando as coisas crescem e morrem dentro de alguém sem conseguirem ser expressas, sem chegar aos outros no gesto, na fala, nos atos, loucura é quando alguém fica fechado em si mesmo, sozinho e trancado com seus sonhos, suas esperanças, seus fantasmas… Seus fantasmas, sombras sem voz e sem fala… (Para alguém próximo) Você já reparou no olhar de um louco? No que há de tristeza, ansiedade e sofrimento no olhar de um louco? Ah, está achando que isso é elucubração? Está bem, está bem, vou parar, mas não é elucubração coisa nenhuma, o que há é que ninguém gosta de pensar nessas coisas. Mas, tá, vou parar, parei, pronto!
Para o espetáculo de hoje foi o Diretor que escolheu meu personagem. A escolha, como imaginam, foi por idade, tipo físico e tal… O que, pra mim, já é uma bobagem: Goethe, aos 80 anos, tinha 20, e amava Ulrica como um adolescente ama pela primeira vez. Mas seja, idade, tipo físico, já que o tranquiliza achar que há nisso um critério de escolha.
Escolhido o personagem, recomeçou minha agonia. A luta e o jogo do ator. Primeiro, algo ainda impressentido e exterior: o contato, apenas, com o personagem. Conversarmos sobre coisas triviais, observar-lhe os gestos, o corpo, a voz, a maneira de falar, de se vestir – que tudo isso fala de alguém, de quem é esse alguém… Deixar que ele se torne uma presença. É tão bom quando é um personagem que nos fala aos sentimentos e à mente! Vê-lo passear à nossa frente em nossas horas de sono e de sonho, presença tomando-se familiar, querida, necessária. Como quando um amor começa, impressentido, maré, rio na enchente inundando devagar as margens. A espera da chegada, a alegria ao anúncio de sua voz, de sua figura surgindo da sombra, nos despertando por inteiro, próximo e diferente, levando-nos a ver coisas que ainda não tínhamos visto. Que descobrir o mundo pelos olhos do outro é como olhar em um caleidoscópio, é ver, a cada movimento, novas imagens, um mundo também outro, diferente – embora os cristais e cores sejam os mesmos para todas as formas humanas.
Mas um personagem também pode ser algo terrível, presença importuna e indesejada, luz aguda doendo nos olhos – como esse personagem que me foi dado. Minha antipatia por ele foi total, desde que comecei a vê-lo mais de perto. Criticá-lo, fazer uma atuação crítica? Nem pensar! Ele é o protagonista, o herói da história, e é assim que o Diretor quer apresentá-lo. Afinal, é um personagem tão querido para ele. Identificação? Talvez.
Não podia negar que fosse inteligente. Mas, quanto mais o via e ouvia, mais ele me irritava. Possessivo, dominador, autoritário, narcisista, certo de que suas idéias representam o consenso universal. Irritava-me a maneira como ele tratava os outros, sua falta de afeto, seu desprezo pelas paixões e emoções, seu ar de superioridade… Será que ele pensava mesmo que era melhor que todos os que vieram antes, ou superior a todo mundo? Superior em quê?! Será que ele não entende que o uni-verso não é a versão única de todas as coisas, e que o que vocês, espectadores, buscam é a di-versão, a versão outra, não vista, e a ser aqui descoberta?
Essa interrogação me faz retomar a busca. A busca… que, agora vejo, talvez fosse já o primeiro passo em direção ao meu plano. A busca que alicerça meu trabalho: um ângulo, uma pista, os traços mais evidentes, em cada relação, em cada situação, em cada diálogo, a cada novo encontro. O jogo da busca do ator, com seus vetores duplos: entrega/distância, integração/observação, viver/analisar, experimentar/ refletir, elaborando, mergulhando fundo no personagem e voltando à tona, parando para rever o que a intuição me leva a apanhar em meu mergulho, e o que a minha razão a seguir me exibe em plena luz, para apreender sob outro ponto de vista.
Mas, no caso, minha busca e o plano que dela resultou vão dar um susto no Diretor, que recomendou: Esse personagem deve ter projeção, destaque e força na cena, pois, ele é o protótipo do homem bem sucedido na sociedade atual!”. Mas para mim, à medida que convivemos, comecei a vê-lo tal qual é, já tão diferente de como se apresenta: tudo nele é produção, aparência, simulacro, imagem visando a criar nos outros o efeito desejado. Desde o toque mais simples – o vestir-se pretensamente descuidado, pois fica bem parecer distante desta sociedade mergulhada no consumo”. O discurso: tudo nele é só discurso, a palavra tornada instrumento, servindo apenas a essa produção de imagem, em uma habilidosa manipulação de razões e desrazões, de frases de efeito, de racionalizações – evidentemente quase sempre opostas a sua prática. Falando em igualdade e praticando a diferença. Usando as diferenças para estabelecer hierarquias, pretensas superioridades e inferioridades. Dizendo-se preocupado com a sociedade, o mundo, os princípios e valores éticos, mas na realidade unindo-se ou servindo apenas ao pequeno grupo que concentra em suas mãos o poder e o dinheiro. O dinheiro… A Bolsa de Valores é sua igreja, seu templo. Afinal, como ele diz (tom) “o dinheiro é o eixo mesmo da sociedade atual. E num mundo globalizado a Bolsa de Valores é uma forma de integração universal”. “Integração”?! Bah! “Integrar” é tornar inteiro, completo, e o que vemos é um mundo cada vez mais dividido e desigual! Mas, para ele, a economia é o objeto único de sua reza diária, reza na qual as palavras (tom) lucro, mercado, ordem, produtividade, controle, comércio, tecnologia, sublinhadas com números e estatísticas, alardeiam seguidamente um fantasioso “sucesso”. Um “sucesso” enfeitado ou mistificado com palavras esvaziadas, tornadas chavões já sem sentido (tom) – democracia, liberdade, modernidade, progresso, desenvolvimento, crescimento… Servindo a que? Servindo a quem? Sobretudo isso: servindo a quantos e a quem? Diante dessas perguntas incômodas… ele mente. Mente, ou cinicamente desmente o que ele mesmo antes afirmara. Ou omite informações que o denunciem. Mente, sabendo que mente. Mentira, hipocrisia, cinismo que nós todos já percebemos. E que só levam ao desencanto, à apatia, à indifença, a não acreditar em mais nada.
Meu espanto chegou ao auge quando ouvi o Diretor dizer: “Mesmo tendo para você aspectos criticáveis, ele acaba sempre se dando bem. Não se esqueça: ele é um vencedor no jogo do poder atual.”
Mas, eu confesso que já estou sem paciência para esse tipo de gente. Cansado dessa atitude, tão atual, de tantos, de criar espelhos para a própria imagem, acabando por esquecer que ela é apenas um simulacro, imagem feita para os outros e passando a contemplá-la, embevecido, já sem noção de seu próprio tamanho e seu rosto real.
Foi quando Dioniso, o deus dos mistérios e do teatro, começou a sussurrar ao meu ouvido: é isso que você quer? Apenas brincar, distrair, tornar naturais, ou banais, atitudes que você condena e gostaria de denunciar? Como brincar com isso, como rir e fazer rir de algo tão sério? Brincar, apenas, com algo que afeta a vida de todos nós? É isso o que você espera do teatro? É isso que você quer dizer? É isso que você quer fazer ver?
Lembrei-me de quando fui Fausto. Fausto, um homem que também vendeu sua alma ao diabo para ter riqueza, saber e um poder total, absolutos. Mas que, levado por Mefistófeles a percorrer os reinos da Natureza e da História foi mudando sua visão, e aprofundando uma nova consciência. Você, sim, era um personagem autêntico, Fausto. O que eu ouvi de você, e disse a tantos, eu não mais esqueci. Você me fez ver que, à medida que o mundo cresceu, tornou-se também mais confuso. Que cada passo no caminho do conhecimento abriu um novo abismo, a abertura possível seguidamente adiada. Que o fausto que nos cerca – e lhe deu nome – o acúmulo de riquezas, de saber e de poder a nada nos levaram. E a grande represa que você viu construir e supôs que seria capaz de transformar as nações, hoje sabemos, era na realidade a sua – ou a nossa – própria sepultura. “Meu império é uma ilusão”, você disse. “Mas se as coisas estão assim, não ficarão assim por muito tempo, pois tudo está em movimento”.
Tudo isso foi reforçando o meu plano, sedimentando minha decisão, me levando a buscar por em ação o que eu via. Que ser ator não é só desenhar, esculpir, dar corpo e vida a um ser humano, é colocá-lo em ação na cena do mundo. A cena do mundo… Mas que mundo temos hoje diante dos olhos? Diante de nós e em torno de nós, tudo está em movimento. Neste império em crise, a maioria dos bolsos está ficando vazia, o caos reina por todos os lados, a corrupção é geral. O ouro hoje é papel, sem a alquimia tão sonhada que lhe dava suas virtudes. Insegurança, Violência, Miséria, Ansiedade, Insolvência, Privação, esses sombrios vultos que tanto ameaçam, só não entram na mansão de um pequeno número de ricos. E o Desejo, nosso desejo mais fundo, onde está? Onde está nossa Paixão, nosso Sonho? Nossa sede de mais? Perderam-se nas trevas de nossa alma enlouquecida, na sombra que mascara nossa falta e impede a luz, a alegria, a união. A morte é um tigre que espreita no mato: estamos criando filhos para a morte.
Porém, em torno de nós, o medo e a esperança ainda alternam suas falas.
É com muita emoção, com muita raiva e impaciência, que vejo tudo isso. Mas também com muita ternura. Porque, apesar de tudo, eu creio. Eu creio na vida. Creio no ser humano, apesar de muitos seres que vejo. Creio que a morte não pode devorar o homem que sacudiu seu pó. Ela nada pode contra nossa eternidade, feita de Lua e do mistério portador de seu sopro de vida, feita do Sol que esse sopro ilumina e redime, feita do infinito em que Sol e Lua se prolongam e a invenção de horizontes abre um mar além da história, em que o ser humano, hoje atônito e perdido, poderá vir a encontrar novo pouso e morada, uma vida nova. Todo fim é fogo e cinza, e incandescência de uma nova aurora. Uma nova aurora: se começarmos de novo, do princípio. Retornando às nascentes da vida, à região “de onde ascende à superfície da Terra tudo que tem energia e vida.” A tudo que nos renova e nos faz mais inteiros.
Por fim, um pequeno passo me levou, da decisão, à ação.
Ontem à noite, no ensaio geral, eu fazia o papel do personagem escolhido pela Direção e apresentado tal como fora por ele orientado.
Ao terminar o ensaio, alguém veio falar comigo. Eu me sentia cansado. Muito cansado. Em dado momento, não sei mais como nem porque, me vi dizendo aquilo que não sai de minha mente, aquilo que ora me ocupa por inteiro:
– Perdi minha mulher… Há 20 dias… 50 anos juntos… e perdi minha mulher… minha metade… minha anima….Durante o dia me atordoo com o movimento em torno. Mas as noites… as minhas noites são terríveis…
Quando eu disse isso, a mulher que estava diante de mim emudeceu. Ela sentiu que nada havia a dizer. Que há dores que não cabem em palavras. Embora em palavras se tente dizer a vida e a morte.
Mas ali, naquele momento, não era mais o ator que falava: era eu.
Isso me fez pensar. E decidir fazer o que agora faço, ao falar com vocês, espectadores, como ora falo: hoje, aqui, agora, não quero ser personagem algum. Se teatro é lugar de ver, de deixar cairem máscaras ou aparências e fazer ver rostos humanos, é o meu rosto, o meu próprio rosto que vocês hoje estão vendo aqui, quem sabe pela primeira vez. Eu decidi trazer para vocês… eu mesmo, o que eu sou, o que eu penso, o que sinto. E também não é um personagem, sou eu que agora lhes pergunto: vocês já viram, de perto, um rosto humano? Já viram seu próprio rosto? E o rosto de quem vive a seu lado? Ou a vida humana já está tão banalizada, minimizada, tão sem valor, que precisamos resgatar a perdida memória do que seja um rosto humano?
Alguém, até para desviar qualquer emoção, poderá me olhar e dizer: “Ah, ele é um ator, isso deve ser teatro, representação.” Engana-se. No ritual da missa católica há um momento em que o celebrante diz: “Tomai e comei, isto é meu corpo. Tomai e bebei, isto é meu sangue.” É o momento que precede a comunhão. Teatro é isso: teatro é comunhão, é corpo e sangue entregues, partilhados. É assim a comunhão teatral: olhos nos olhos, rosto diante de rostos, um ator na entrega de seu corpo e seu sangue, de seu ser inteiro, para fazer ver, por inteiro, sem máscaras ou disfarces, um outro ser humano. Um ser humano outro, semelhante e diferente. Tão semelhante e tão diferente neste mundo de hoje, globalizado, diversificado, plural. Se vocês hoje saírem daqui querendo ver, ver o rosto do outro com quem falam, ver quem está a sua frente, ver quem está a seu lado, ver, VER O OUTRO, o próximo e o distante, terei cumprido o que é meu papel primeiro e maior: fazer ver o ser humano. Para isso nasci, para isso vivi, para isso trabalhei minha vida inteira, para isso estou aqui, mais uma vez. E nossa comunhão teatral só é possível porque eu, ator, tal como vocês, sou apenas e simplesmente… um ser humano.
Obrigado por sua atenção e resposta.

                      “JÁ VI ESSE FILME”        ou                “É SÓ …TEATRO”  

                                                                ou

                     “QUALQUER  SEMELHANÇA  É MERA COINCIDÊNCIA “

                                                                                                             Maria Helena Kühner

 

 

                     Foco de luz em Diretora, à frente, esquerda. Dirige-se ao público:

Diretora –  Boa noite, senhores espectadores. Se vocês estão aqui hoje é porque gostam de teatro, não? Sou a Diretora desta peça, que estou encenando especialmente para vocês.  De mim depende tudo que vai acontecer nesta cena, nada aqui se faz se minha ordem ou licença. Mas, como estamos em uma democracia e eu  quero estar bem com todos, faço até algumas concessões, alianças, favores, para que tudo corra bem. Mas tudo vai mesmo correr bem,  como verão, porque eu tenho certeza que…

              Foco em outra figura, que a interrompe, no outro lado, também para o público.

–  As certezas são difíceis. Por isso a Diretora me tem como seu Conselheiro e Consultor. Ela há muito aprendeu com o Juracy Magalhães que o que
é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil , pois o melhor sistema para manter as coisas na ordem que desejamos  é seguir minha diretrizes: eu é que sei como transformar toda e qualquer pessoa ou coisa em um produto destinado ao consumo.  Eu é que sei como dizer o que todos querem ouvir , para que ela possa ter  garantias de que vai ficar bem com todos. Como verão, eu sou uma figura-chave. Meu  nome é Marketing, Mister Marketing

VOZ (OFF)– Hei! Calma aí! Não se assanhe tanto! Você vai dizer e fazer o que EU mandar! As palavras de ordem, o poder,o controle, os métodos são meus! Se você sair da linha vai levar um puxão de orelhas em público! Ou perder seu cargo e papel – o que é pior! Estou de olho em você, não se esqueça!

                               Em outro ponto, nova figura. Pose e tom  marcados.

– Eu é que sou a figura-chave desta peça. Só com isso já adivinham, não? Sim, eu sou o Político. Desde os gregos sabemos que a Retórica é a mestra do homem público, porque é pelo discurso que podemos convencer, persuadir, fazer as pessoas pensarem e agirem como é de nosso interesse. Vocês ouvirão de mim belos discursos, em defesa da ética, contra a corrupção, contra os desvios de qualquer tipo e tamanho! Meu discurso será sempre em nome dos direitos humanos, dos direitos de todo e qualquer cidadão! Provarei que sou um paladino da liberdade e da democracia, e que faço leis no interesse de todos  nós! E terei seus aplausos, estou certo!

Diretora (para algum ponto, fora da cena) – Matias! Você esqueceu  do foco de luz lá no fundo! Ninguém está lá!

Matias (em off) Ué, se ninguém está  lá pra que a luz?

Diretora – Oh, ignorância! Está lá o Ninguém, o João Ninguém, o Zé Povinho, o Anônimo,  dê-lhe o nome que quiser. Eu avisei que ele estaria lá atrás!

Matias (off)– Ah, é que a senhora às vezes enche a boca e chama o cara de O  POVO, O POVO, não pensei que agora  ia… Pronto! Tá com a luz nele!

                                  Figura em fundo, meio encolhida, olha pra todos os lados, um tanto  

                                                   surpreso de ver-se sob o foco de luz.

Zé Povinho  – Eu…  eu ainda não sei bem qual  vai ser meu papel nesta peça…É que em geral eu fico nos bastidores…e só entro em cena carregando a bandeja do café …ou pra levar os objetos de cena de um lado pro outro… E só sei que quando o bicho pega eu que pago. Sempre. Mas de hoje me deixarem falar eu…

                                          Luz sobre outra figura que entra,  cortando:

– Deixa que eu falo por você… e pra você. (ao público) Eu sou a Mídia. Ou melhor, Dona Mídia. Sou casada com Mister  Marketing e nos damos muito bem. Às vezes nos desentendemos, como verão no decorrer da peça, pois eu também preciso e gosto de me mostrar independente.  E como sou inteligente verão que eu também gosto de investigar, e quando faço uma descoberta que causa sensação, escândalo…  Ah! É a glória!

Diretora – Bem, já eu todos se apresentaram, podemos começar! Luz, câmera, ação! Não, isso se diz em cinema, no teatro são as três batidinhas.  (Bate: Tum…tum…tum)

                              Grito da plateia, alguém surge correndo e  vindo subir ao palco:

– Espere! Eu ainda não me apresentei!

Diretora – Mas… que… quem é você? Eu não chamei você pro elenco!

– Eu sou o Espectador.  Não há teatro sem espectador. Eu vou ficar assistindo, e de vez em quando vou fazer meu comentário.  E como gosto de humor, de riso e de sexo, se a peça ficar chata eu entro em cena e conto uma piada! Tenho algumas piadas ótimas! Sabe por que loura burra só pode ser enterrada em caixão triangular?

Diretora  – Um caixão em forma de triângulo? Não entendi.  Por  que?

Espectador – Porque assim que se vê no escuro ela vai logo, logo abrindo as pernas…

Diretora  – Piada racista! Preconceituosa! Idiota!

Espectador Idiota, nada! Racismo, preconceito, dá o maior IBOPE! Pergunta ao pastor! (Para a Mídia) Dá ou não dá? “Falem mal, mas falem de mim!” já dizia Napoleão!

Mr. Mkt – Ora, Napoleão… Tá maluco! Napoleão não entendia nada de marketing!

 

 

Espectador – Maluco…? Gay é que é maluco, doente, e precisa de “tratamento” para se

“curar”! O pastor já mandou essa também, não foi, D. Mídia? Ah, essa eu vou botar na minha lista de piadas! Mas pergunta a repercussão que tá tendo!

Diretora  – Ah, sabe que mais? Vamos é começar a peça, que é o que o público está esperando. (para Espectador) Você fica por aí, se quiser. (para os demais) Vamos começar!

 Político – Mas…  começar por onde?

Diretora ( ao público) É mesmo difícil saber por onde começar…Teatro começa sempre com um conflito… Um protagonista faz algo com que seu antagonista não concorda, entram em conflito e ….  (olhando Mr. Mkt. , Mídia e Político que se reuniram em algum ponto) Mas quem seria o protagonista e o antagonista aqui? São todos tão amigos… E o conflito não pode ser dramático que …

Espectador (de seu lugar, corta) – Nem vê! Drama é um porre!

Diretora – (para, volta-se para o público) Pois é…  E vocês vieram aqui pra se divertir, se distrair, não é verdade? Tem que acontecer alguma coisa. Se não tem nada acontecendo eu tenho que fazer acontecer… inventar um conflito…ou algo que pareça um conflito e crie uma trama leve e divertida, mas que logo logo ache uma solução para que ninguém pense que algo não vai bem…Tem que acontecer alguma coisa… alguma coisa que…eu tenho que fazer algo que…

Espectador – Eu quero rir! Bom humor! Vamos lá!

                                             Súbito rumor de vozes crescendo em fundo.

Diretora – Que… qu’é isso? Um conflito?!…Nem esperaram que eu fizesse acontecer algo!

                                            Luz abre mais sobre Mr. Mkt e Político.

PoliticoEu pago! Pago o que você pedir! Mas preciso de seus serviços!

Mr. Mkt –  Pagar…? Só de boca, não, que eu te conheço bem… Cachê adiantado.

Político – Não tem problema! Eu tô encaminhando uns negócios, posso desviar uma boa grana pra você! Te pago, e bem!

Mr. Mkt – Tá! Mas o que você quer exatamente?

Politico – Minha imagem!…Quero que você e D. Mídia retrabalhem minha imagem! Você sabe muito bem que a imagem é tudo! E depois daquelas informações – calúnias! – que vazaram meu nome ficou meio sujo e..

Mr. Mkt– “Meio” sujo… Ahn… E qual é a imagem que você quer passar agora?

Politico – O contrário da que me deram! Quero ser visto como um defensor da ética e da moral! Alguém que se empenha em uma luta sem tréguas contra a corrupção!

Mr. Mkt – Pô, logo você… Eu faço marketing, não faço milagres! Todo mundo sabe que você tem uma porrada de processos na justiça…

Político – Ora, justiça!… Aqui existe Democracia, mas não existe Justiça! Se nem os já condenados são presos, os que só vão ser julgados daqui a 20 anos podem continuar se dizendo inocentes!  Negue! Negue tudo! Diga que são calúnias de adversários políticos! Diga o que quiser, mas livre minha cara!

Mr. Mkt – Santa Impunidade! É sua padroeira, não?

Político – Santa Impunidade é minha protetora! Sei que posso contar com ela! Sempre! Então…

 D.Mídia – Ei, ‘pera aí!… Falar assim da Justiça é injusto, é a suprema ofensa, o supremo acinte, o supremo insulto!   Ainda há quem busque fazer Justiça, quem…

Mr. Mkt – Buscar não é conseguir. E a exceção só confirma a regra.

D. Mídia – Mas ainda há quem… ainda…

                                          Voz vai sumindo, luz descendo sobre eles.

Diretora (assistindo de seu lugar ) – Epa! Essa foi forte! E começaram por conta própria, sem mim… Nem me esperaram fazer acontecer algo … Agora tenho que ver como encaminhar a ação, como desenvolver esse conflito, como aproveitar a situação criada para direcionar a atenção da plateia, e convencer o público de que este ainda não é o conflito principal…  Tenho que fazer acontecer algo que… Ah! Já sei! Vou fazer acontecer algo muito especial! Uma situação sui generis, nova, inovadora, como nunca antes se viu! ( ao público) Vocês vão ver o que vai acontecer! Algo novo, inédito! Vocês nem imaginam!

VOZ (off )- Espere! Não fique falando em mudança, em inovação! As palavras de ordem quem dá sou eu! E essas palavras hoje têm que ser diversas e plurais! Você agora vai ter que falar em inclusão social, em ascensão social, em participação social, em cidadania, e sobretudo em  direitos! Direitos humanos! É o que está na crista da onda! Tem que falar e fazer isso acontecer, aqui e agora, aos olhos de todos!

Diretora – Ih, complicou… Falar é fácil, fazer é que são elas… Mas eu chego lá! Vou começar… Ou melhor, a peça já começou, e sem mim… Eu tenho que interferir na ação, fazer dessas palavras de ordem minhas bandeiras… Sabe que mais? Então vou ser também personagem, vou entrar em cena e assumir o comando da ação! É assim que vou fazer e acontecer! ( ao público) Senhores, lá vou eu!

                                                  Vem para junto dos demais.

Diretora – Senhores… cheguei!    !

 Os três – Hein…?!

Político – Resolveu… entrar em cena?

Diretora  – Sim! É minha  primeira ideia inovadora!  

Mr Mkt  – Ideia …“inovadora”…?

Político – Ou uma prática nova?

Midia – Vai querer mudar mesmo alguma coisa?

Diretora – Claro! A Direção presente na cena muda tudo!

Político – Hum… O que, por exemplo?

Diretora – É que vocês falando em imagem, em produzir e vender uma imagem me despertaram para a necessidade de atentar pra isso, de também cuidar de minha imagem! E de fazer pra eles (mostra o público) um teatro novo, diferente!

Político – Não entendi…  Onde quer chegar com isso?

 Mr.MKt – Eu entendi! Claro! É cuidando de sua imagem que você vai ser conhecida e reconhecida!

Midia  – Vai ver sua popularidade crescer, sua cotação ir lá em cima!

Político – E com isso vai poder fazer o que quiser, dizer o que quiser…

Mr Mkt – E será  sempre aplaudida! Terá milhares, milhões de vozes te aplaudindo, louvando, gritando sem nome!

Político –  Hum… Será muito aplaudida… E quanto mais popular, mais livre para agir… Sei…

Diretora – E é por isso que decidi iniciar a ação, ou melhor, levar adiante a ação dramática  fazendo acontecer algo, algo novo…. 

Mr Mkt – E o que seria esse “algo novo”?  Novidade nem sempre dá certo. Porque não fazer coisas já testadas, só dando uma  cara nova, um figurino novo?

Mídia –  Ele tem razão. Pra que “algo novo”? Podemos continuar a encenar histórias antigas, já testadas e aprovadas!

Político – Ou mesmo atuais!  Já fizemos encenações excelentes, que convenceram todo mundo!

Mídia –  Isso! Há fatos, acontecimentos passados que podem dar boas peças!

Espectador ( de lá)- A realidade! A realidade é uma comédia! O cotidiano tem mais piadas  que a minha lista inteira!

Diretora –  Não! Não, não e não!

Mr Mkt – Por que?

Diretora – Se falarmos em coisas passadas, em fatos acontecidos, vão logo lembrar do  mensalão, dos mensaleiros!

 Mídia – Fato que deu o maior trabalho pra abafar, tirar de cena!

Político – Ih, é! Esse tema  tá proibido! Proibido!

Mr Mkt – Poderíamos contar histórias do tempo do império… Em literatura tem dado IBOPE…

Diretora  – Nãaao! Pode fazer lembrar também imperialismo, que também não é um tema desejável!

Político – Embora tenha ficado um tempão na moda décadas atrás…

Mídia – Mas  assustou tanto que deu pretexto pra uma ditadura de 20 anos!

Diretora  – Não! Já disse: algo novo! Eu tenho que fazer, e vou fazer, algo social...

Mídia – “Tudo pelo social!” O outro Diretor dizia isso. Vai voltar com esse discurso…

Mr Mkt (emenda) – … que nem deu o IBOPE que ele queria?

Político – O que é que você tá querendo fazer? Ahn? Que teatro é ação, não é só discurso!

Diretora – Será uma ação… Vou por em cena um novo personagem…

Mr Mkt –  Mais um em cena?

Mídia –  Fazendo o que?

Político – Você mesma não devia estar dirigindo, em vez de vir pra cena e virar personagem?

Diretora –- Um professor um dia me disse que a quebra de limites, fronteiras e barreiras entre classes sociais, raças, entre culturas e gerações, entre línguas e nações é uma das marcas de mundo atual! Então eu decidi que essa marca tem que estar minha imagem, a marca de uma Diretora moderna!  Eu decidi que….

Político – Você “decidiu”…?

Mr. Mkt – Sem nos consultar? –

Diretora ( sem lhes dar ouvidos ) – Eu decidi que vou fazer  acontecer algo novo:

Os três – O QUE?!….

Diretora –   Vocês vão ver!  (grita para o fundo) – Zé! João! Joãozinho! Vem cá!

Zé Povinho (entrando) – A sra. me chamou? Tá precisando de alguma coisa?

Diretora – Vem cá! Vamos conversar…

                                                        Ele a olha um tanto ressabiado.

Zé  Povinho  –   Conversar…? Comigo?

Diretora – Você sabe que eu nunca esqueci de você. Que reconheço seu trabalho, e por isso sempre lhe dei um dinheirinho, um pedacinho de pão quando vi você com fome, uma roupinha quando tava passando frio…

Zé  Povinho –  Eu sei  que a sra. conhece meu trabalho… Mas…

Diretora –- Agora vou lhe dar uma graninha… um pequeno cachê mensal…

Mr Mkt (à parte) – Um  outro Diretor já fez isso também…

Diretora –… e trazer você para a cena, dar-lhe um novo papel, dar-lhe uma promoção socialvocê vai passar a cidadão classe C!!

Zé  Povinho – Não sei bem o que que é isso, não, mas… obrigado.

Politico –  Pô… ela podia seguir a tradição: era só dar a ele a grana em moedinhas, jogando no chão, pra ele ter que ir catar de quatro e aí a gente ia lá e…créu! se divertia!

Espectador – Nisso eu não acho a menor graça.

Politico – E se ele agora achar que vai ter mesmo vez e voz como é que fica?

Mr Mkt – Calma.  Botamos ele no lugar de novo.

Mídia – Hum… estou com um pressentimento esquisito… Eu não gosto quando tenho esses pressentimentos…

VOZ (OFF )- Eu disse pra falar isso, alardear isso como bandeira, não disse pra fazer isso! Você tem que aprender com o Político: imagem se constrói no discurso, e com o discurso! Levar o discurso a sério, acreditar no discurso é função de quem ouve, e não de quem fala! E agora, como é que fica?  Vou ter que tomar providências!       

Político  –  E quanto é que isso vai custar pro nosso bolso?

Mr Mkt – Ah, o de sempre: nada. O que u’a mão dá, a outra tira. É só aumentar os impostos sobre aluguéis, sobre alimentos, sobre serviços, a taxa de juros pra quem precisar de empréstimo e ele mesmo e a cambada dele vão pagar de volta o que ganhou e ainda vão nos dar algum lucro.

Político – E se você fizer um bom plano de marketing esse dinheirinho pode ir  todo parar no consumo!

Mr Mkt – Deixa comigo!

Mídia – E posso fazer um bate-caixa pra mostrar que o consumo é o caminho novo que descobriram!

                                    Diretora se despedindo do Zé, ao fundo. Volta, animada:

Diretora – Pronto. Começamos também.  Agora só preciso tomar mais umas medidas…

Mr Mkt – Hein? Umas… “medidas”?

Diretora – O Trabalho está sob controle, a Produção com tudo em cima, só para desenvolver a ação é que eu preciso ainda tomar uma medidas…

Político  – Medidas…? Que medidas?

Diretora –  Umas medidas… provisórias, experimentais, para… para o bom andamento da ação. Vocês vão ver… (sai)

Político  (para Mr. Mkt)- Eh… Tá ficando muito mandona pro meu gosto! Que a moda não pegue! Que ela não se meta a sair decidindo tomar “medidas”, por mais “provisórias” que sejam, sem nossa permissão! Senão daí é que vai pintar um conflito sério, mesmo!

Mídia – Eu continuo com um pressentimento esquisito, não sei por que!

Espectador (de seu lugar)- Falou em mexer no bolso todo mundo se coça… Aliás, eu também não gosto… E me fez lembrar o que aconteceu no último comício na minha cidade,  quando o Prefeito ‘tava fazendo o maior discurso, na véspera da eleição: “Queridos cidadãos! Eu mostrei que mereço sua confiança! Durante todo o meu mandato eu jamais coloquei minha honestidade e meus lucros acima dos interesses e necessidades de vocês! Neste bolso – e bateu no bolso do paletó – nunca entrou dinheiro do povo!”

Aí alguém gritou lá do outro lado: “Tá de paletó novo, hein, Prefeito?” ( olhando a cena) Olha lá, eles também já estão se juntando para bolar alguma coisa…Vamos ver o que vem por aí.

Político  – Mas, pelo sim, pelo não, tive uma ideia.

Mr Mkt – O que?

Político – Ih, a Diretora está voltando. Você vai ver. (alto, quando a vê aproximar-se) Sra. Diretora,  achamos excelente a ideia de trabalhar sua imagem! Por isso estou elaborando aqui com Mister Marketing e D. Mídia uma estratégia sensacional!

Mr Mkt – (para ele, baixo) – Mas… que estratégia? Nós ainda não combinamos nada!

Político  (no mesmo tom) –  Eu sou macaco velho, meu chapa. Tô nessa há 50 anos. Vai por mim. 

Diretora (chegando junto) – Que é que vocês estão planejando?

Político – Para nossa estratégia dar certo, precisamos de um retrato seu, de corpo inteiro, caprichado, com uma pose bem bonita!

Diretora ( Assumindo pose) – Assim?

Político – Não, não… Tem que ser algo diferente, original!

Diretora  (Nova pose) –  Então…assim?

Político – Não! Vem cá! Vamos fazer algo simbólico! Eu vou …(vai falando e fazendo) amarrar suas pernas…assim… pra mostrar que você é uma mulher poderosa, mas prudente, que não tenta dar um passo maior que o tamanho das perna.s.. E que, mesmo estando presa, amarrada, limitada, você mantém seu equilíbrio, entra em campo e faz seu jogo!

Diretora –- Mas… mas assim cada passo, cada ato meu fica difícil ! Complica tudo!

Político – Porém não impede seu jogo !

Diretora – Meu jogo! Assim?… Isso não é um jogo democrático!

Político – Como não é um jogo democrático? …Eu não estou tirando você de campo, como já fizeram com outros! E estarei a seu lado sempre que precisar! ( à parte ) Pelo menos na teoria…

Diretora (continua seus protestos )– Sim… não… Mas… assim eu não posso… assim eu…eu não quero…

Político – (para Mkt) Ela não quis entrar em cena? Então agora aguente! Vamos!  (para ela) Voltamos logo! (Saem)

                                  Ela fica dando pulinhos para um lado e para o outro.

Diretora – E essa, agora! Jogar amarrada é fogo! 

( Para um instante, e se dirige ao público) Não está claro. Não estou fazendo ficar claro. Que se eu quisesse mostrar claramente o que acontece, se eu quisesse contar aqui uma história, mostrar que o que acontece não acontece da maneira como se supõe que deveria acontecer,  se eu quisesse mostrar ou contar o que acontece e não está acontecendo como devia, ou como era de se desejar, eu acho que…( recomeça os pulinhos) que eu  teria que começar de outro jeito…ou conduzir de outro jeito a ação…para vocês verem que o que eu quero é…

Zé Povinho (entrando, vê a cena)-  Por que a sra. está com as pernas amarradas e pulando desse jeito?

Diretora –- Hum…?  Eu… é… é só um exercício. Ginástica. Meu  fisioterapeuta  recomendou. Pra testar e aumentar  a força de meus músculos! Entendeu?

Zé  Povinho  – Não.

Diretora – É… você está vendo…está claro que eu…que está acontecendo algo…Mas teatro é isso:  ação, as coisas acontecendo…eu não vou só contando, eu vou mostrando como as coisas acontecem… Você mesmo viu que eu entrei em cena… e comecei uma ação…e …o que estou querendo dizer…é que…é que…ah, você vai ver logo,logo!

Zé  Povinho  ( rindo, visivelmente incrédulo) – Ahn, sei… Então… passar bem! Se precisar de alguma coisa… tô no meu trabalho. (Sai de cena)

Espectador – Também não vi a  menor graça…Que é que eles querem com isso?

                                                                Os três,na lateral.

 Politico – Pra se soltar ela vai ter que dar muito em troca! Se criar algum cargo novo... é  meu! Já tô avisando!

Mister Mkt – Pra fazer nova aliança tem que me consultar!

Mídia –  Se quiser fazer algum favor… vai precisar de mim para  a opinião pública aprovar! (Se afastam).

                                 Diretora sozinha, tentando andar, sempre aos pulos.  

Diretora –  Ai, meu Deus! O tempo tá passando e eu não consigo me soltar!

VOZ OFF – Em vez de ficar aí dando pulos pra se mexer, para um instante e pensa! Você está esquecendo uma fórmula simples, uma fórmula que  existe há  2.000 anos e sempre deu bom resultado!

Diretora – Uma fórmula…  O que? Não atino…

VOZPão e circo! E onde o pão é escasso, aumente o circo! Outros já abriram o caminho pra você!  Tá com tudo na mão e não usa? Entra nessa! Vai fundo!

                              Político e Mister Marketing se voltam para a Voz e ficam ouvindo

Diretora – Pão e circo… Mas… onde…como…

VOZ – Fica só fazendo esse teatrinho… juntando esses atores pra fazer as pessoas verem o que você  quer mostrar … 

Diretora –– Teatro é lugar de VER... Sua definição é essa!

Político – Vira o disco! Pensa numa coisa mais atual! Mais apelativa pro grande público!

Diretora – Sim, mas… como… o que…

Mr Mkt (vindo pra junto dela) – Entendi! Claro! Futebol! Tá na sua mão!  É gol certo! Bola no fundo da rede!

Politico – Você tá com uma Copa do Mundo na mão e fica preocupada em fazer… teatro! Bah!

Diretora – É verdade… Futebol… a Copa!

Mr Mkt – Você não queria um “jogo democrático”? Futebol é a coisa mais democrática que existe! Iguala ricos e pobres…

Político – Pelo menos na torcida…

Mr Mkt  – Entra nessa! Vai fundo!

Diretora – (pensativa)- Isso! A Copa do Mundo! Como é que não vi isso: é um teatro novo e diferente!  

Mr Mkt  – Não pode fazer aqui nesse palco, mas podemos por telões em vários pontos da cidade e teremos um público dez vezes maior!

Diretora – É verdade! Tô comendo mosca… Tenho que investir nessa…. Vou mobiizar todo mundo pro meu espetáculo! MOBILIZAR todo mundo..!.

                                                                 Mídia  entrando.

Midia – Mobilizar ? Tá pensando em mobilizar ? Pois enquanto você pensa, alguém já fez!

Diretora – Hum…! Fez …? Quem fez o que?

Midia – Liga  o rádio ou a TV! O noticiário tá em toda parte!

Voz de Locutor ( em off)—A mobilização está  se alastrando por todo o país! Começou com a passeata no RJ, que foi juntando gente, reunindo quase 300.000 pessoas… e foi se espalhando …já atingiu 130 cidades… milhares, milhões de pessoas !

Diretora – 130 cidades! Milhões de pessoas! (num rompante de raiva) Ah, isso é  injusto! Profundamente injusto! Eu aqui amarrada, dando pulos pra poder me mexer e… vem alguém e me rouba a cena, e…e…

Espectador– …  e consegue uma plateia que nem em seus mais delirantes sonhos você poderia ter, de milhares, milhões ! E com entrada franca e participação e interação… tudo que há de mais moderno no teatro!

Mídia – Eu  a-do-rei! Que fazer auê é comigo mesmo! Abri o maior espaço pra eles! Eu e meus colegas no mundo todo!

Político – E eu? E eu? Fiquei mais sujo que pau de galinheiro!

Mr Mkt – Você não ficou assim, você é assim…

Político – Até você? Que eu pago pra dizer o contrário?

Mr Mkt – O que não me obriga a acreditar no que digo.

Diretora – Mas quem… como…

Político – Seu amigo, o Zé Povinho, o Anônimo, tá nessa!  Vai ver foi ele quem organizou isso!

Diretora – Ah, ele não tem capacidade para…

Mr Mkt – Olha as imagens na TV: nâo se preocupe. Foi só uma meninada, sem experiência…  Coisa de juventude…

 Mídia – Só que essa meninada ‘tá ficando esperta. E mais informada do que a gente pensa.

 Político – E o pior é que já votam desde os 16 anos! Temos que fazer campanha para eles deixarem de votar!

Mr Mkt – Tem colega seu saindo de fininho pra não correr o risco de ser apanhado. Com o que desviou e se locupletou já se garante pro resto da vida.

Político  – Ah, mas deixar a vida pública e cair na privada… não é comigo! Tenho é que ver como aproveitar a situação e criar minha nova imagem!

Mídia – Não ‘tá fácil. Protesto virou epidemia mundial na Internet. E denunciam e reivindicam

Mr Mkt – Olha só! Parece até que aprenderam comigo: mostram o que todos querem ver, dizem o que todos querem ouvir!

Político –  Ora, a Internet… Pois eu preparo um discurso e…  boto também na Internet! Pronto!

Mídia – Mas tem que ficar atento à linguagem deles. A linguagem deles é outra, muito diferente da sua.

Diretora – É…  pelo  jeito eu também vou ter que mudar tudo…achar palavras novas, inventar novas cenas…

Mr Mkt – Eu ajudo. Vamos dizer que você está ouvindo “a voz das ruas”, que está provando a “liberdade de expressão” que democraticamente damos… Vamos falar em “participação de todos”, em “diálogo”…  Que essa é “a  verdadeira cidadania”… Coisa que usa a palavra verdade sempre pega bem.

Político – O problema é que…eu acho que eles não estão acreditando mais em discursos… Ficam querendo ver o que eu fiz, o que eu faço… pedindo “transparência”… E aí, já viu, né, a m…  que tá dando, e a m…que vai dar! 

Midia – E você nem acompanha tudo que rola na Internet…

Espectador (de lá, sacaneando) – Que a gente já cansou de enganação e vigarice tá na cara! E aí?

Diretora – Olha só a cara da plateia: interessada e atenta! O público está participando, até mesmo o público das galerias! O que prova que é O POVO mostrando sua participação, O POVO está tendo vez e voz, O POVO está se pondo em movimento e exigindo novos rumos para a ação! (para os demais) Pô, eu imaginei uma peça e saiu outra, completamente diferente! Dá próxima vez eu venho mais preparada, com todo mundo com papel já definido e decorado, nada de improvisação, para não haver imprevistos e surpresas!

Mr Mkt – Eu vejo como aproveitar o que aconteceu para mantermos o controle e os rumos da ação.

Midia –  Calma, gente. Vocês estão superestimando o que aconteceu.  Passeata sempre houve: a dos 100 mil em 64… as de 68 no mundo…as diretas já, de 84… o impeachment do Collor em 94… e  hoje mesmo ‘tamos vendo a Primavera Árabe… a Turquia…

Político –   É, mas é perigoso. Se essa história de a rua ser  “a arquibanda do povo” pega vai dar muito trabalho!

Mr Mkt – Calma. Vamos pensar bem o que fazer. 

Político – (para Mídia) – Você precisa desmoralizar rápido a ideia de protestar, deve falar em “vandalismos”, em “violência”, dizer que as reivindicações são “genéricas”, que eles não sabem direito o que querem, nem como chegar lá! Mostrar que só é só uma explosão emocional, que logo, logo passa!

Mídia – Não fique tão certo disso, não… Há uma insatisfação com o que está aí…(aponta ao espectador)–  Não ouviu o que ele disse?….E ele nem tava lá na passeata!

Político– Vou ver o que ficam gritando, reivindicando  e preparo um discurso revertendo tudo a meu favor! E pra não pensarem que é só discurso ajeito também um arremedo de ação no sentido que me interesse!

Mr. Mkt– Um arremedo de ação?O que é que você está pensando?

Politico– Vou propor uma “reforma política”! Ninguém falou nisso nas ruas, mas podemos dizer que , no fundo, isso que querem: mudança! E aí nós fazemos uma pauta no de sempre: reformar pra continuar ficar tudo como está.

                                Deslocam-se para um canto. Diretora fica sozinha em cena.

 Espectador (pra ela) – Fica triste, não, Diretora… Às vezes as coisas não são ou não saem como a gente pensa ou espera… Não conhece aquela piada dos dois loucos?  Tá na internet também.  (conta) Dois loucos tomavam sol na piscina do hospício quando um deles se jogou na água e afundou.  Mais que depressa o outro pulou n’água e conseguiu salvá-lo. No dia seguinte o diretor do manicômio disse ao salva-vidas: “Rapaz, tenho duas notícias a lhe dar, uma boa e outra ruim. A boa é que você teve alta do hospício, com esse gesto nós achamos que já está curado! A ruim… bem, a ruim é que o rapaz que você salvou se enforcou ontem, nós o encontramos enforcado com o próprio cinto!” E o louco, muito calmo,  explica: “Não, doutor, ele não se enforcou, não! Fui eu que pendurei ele pra secar! “   

                                                        Os outros, voltando.

Político –  Olha, pensamos bem no assunto e resolvemos lhe dar uma nova chance, um prêmio de consolação, pra você não ficar frustrada com o que houve: você vai dirigir uma nova peça e nós vamos ajudá-la!

                                          Midia vai lhe desamarrando as pernas.

Mr. Mkt – Você vai dirigir daqui mesmo, deste palco, e vamos não só usar todos os recursos teatrais de que dispomos, como usar toda a tecnologia de divulgação, abrir a novos temas, fazer algo que vai mudar a linha da ação teatral e vai  ficar na história.

Diretora – Coincide com o que já estava querendo! Porque o que eu sei é que essa brincadeira tem que acabar! E eu vou mesmo fazer acabar! Vou mudar toda a história, todo o andamento que foi dado aqui, vou pensar no que ouvi e vou preparar e escrever uma outra história para a nova peça!

VOZ (Off)- Desde que seguindo o que eu mando.

Diretora – Vou chamar meus autores e outros atores mais e vou repensar e reescrever tudo que vai acontecer, tudo que vai ser posto em cena. Para não ser pega de surpresa. Para dar inicio a outra ação dramática, mudar o tema e a linguagem deste nosso teatro, encaminhar tudo de maneira diferente. Vou dar inicio a uma nova montagem, a uma encenação que ninguém vai querer deixar de ver!   Me aguardem!    

                                Zé Povinho surge atrás e vai passando em fundo, cantando:

Zé-   “Porque nada será como antes/ amanhã…  /  Que noticias lhe dão os amigos/   Que noticias me dão de você/ Porque nada será como está…/amanhã ou depois de amanhã/

persistindo no escuro da noite um raio de sol…         

                                                   Pára, dá um adeusinho irônico  e sai.

Diretora – Ah, ele tá pensando…  Ah, nem pense que vou deixar com ele a última palavra! Vou terminar este encenação com…com… como é que eu termino…

Mídia – Termine com um poema de Carlos Drummond de Andrade, que revela a perplexidade  geral do momento e é também uma resposta para ele – que ele talvez ainda não saiba muito bem o que mais vai fazer :

 E agora, José?

A festa acabou,

a luz apagou,

o povo sumiu,

a noite esfriou,

e agora, José?

E agora, você?

Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta,
e agora, José?

E agora, você?


Diretora ( ao público) – Pois eu já sei muito bem o que vou fazer. Para a próxima peça, aqui mesmo, e com divulgação em toda a mídia escrita, falada, televisada e virtual… estão todos convidados! Conto com vocês!


                                           

          COMENTÁRIOS A UM CONCURSO DE DRAMATURGIA

                                                                  

                                                                                  Maria Helena Kühner

 

             Tendo participado, como membro do júri, do último Concurso do CEPETIN- Prêmio Ana Maria Machado, de peças para crianças (2 a 15 anos) –  ocorre-me deixar aqui algumas observações e comentários, que retomam artigo anterior meu, a serem repensados com e pelos que fazem esse trabalho.

De tudo que li, uma questão se mostrou central: a falta de criatividade, de inventividade, de originalidade ou inovação quanto aos temas tratados e tramas elaboradas. Li recentemente 5 peças suecas e 4 canadenses e chamou minha atenção o fato de, mesmo quando retomam temas clássicos ou até contos de fadas, haver uma re-visão, uma atualização para nossos dias, expressa na capacidade de recontar irônica ou criticamente, de atualizar e/ou caricaturar situações e personagens, de tornar presente um personagem inédito com uma bem-humorada visão crítica, de introduzir uma situação nova curiosa e interessante, de utilizar o fantástico ou o fantasioso, de trabalhar a afetividade e o lirismo, de jogar com o improviso, de usar o metateatro etc.

No que li, embora muitos autores deixassem entrever uma inventividade passível de ser explorada e desenvolvida, isto não se dava, ficando muito apenas sugerido, tanto em termos temáticos, quanto na elaboração formal de um roteiro pobre, em que a estrutura cênica é primária, esquemática e repetitiva, em que a situação dramática não evolui, em que a fabulação (se, ou quando existe) é débil e insuficiente, os conflitos inexistem, e  a ação dramática, pouco ou nada desenvolvida, é substituída pela ênfase em diálogos bobos, cheios de gags, piadas, brincadeiras supostamente engraçadas, ou por falas em que o lugar-comum é a tônica e os clichês se repetem, sugerindo na cena o uso de recursos fáceis, macaquices e gracinhas para tentar prender o público.              

É impressionante ver como ficam excluídos dos textos o jogo de relações, contradições, revelações, peripécias e todos os demais elementos que compõem uma sequência de acontecimentos cênicos produzidos em função da ação de personagens. Ação que, obviamente, também se dilui ou se esvazia se esses personagens são estereotipados, sem consistência, indefinidos, se a mudança de cenas tem uma pontuação deficiente, equívoca ou gratuita, sem nada que possa provocar a imaginação, enriquecer a percepção e a sensibilidade do espectador infantil, ou estimular seu incipiente senso crítico e sua reflexão.

O que é frequente alguns tentarem compensar com uma postura que há décadas se vem tentando superar, uma postura doutrinária ou moralista, em que a trama ou narrativa banal é mero pretexto para uma ou várias “mensagens”, ou para encaminhar a uma “moral da história”, em que a relação adulto / criança é ainda uma relação autoritária, manipuladora, que as trata como “massa de manobra” oca e moldável, a ser norma-tizada e dirigida, reproduzindo  a sociedade de cunho vertical, hierarquizante e autoritária de séculos passados  (superior/inferior, adulto/criança, pai/patrão, patrão/empregado) que se busca cada vaz mais ultrapassar em nome de um atitude outra, que leve a despertar o senso critico, a uma capacidade de raciocínio próprio, a um aprender a ver, a observar, a pensar   – desafio novo de uma criança que hoje, pela Tv, pela internet, pela turma da escola, por todos os meios que a cercam, se vê colocada em contato direto com os objetos da cultura. 

             As tentativas mais relevantes que vimos foram as que trabalharam:

              1. Em termos de renovação / inovação temática. Como dado mais auspicioso, no caso, um humanizador resgate de elementos esquecidos ou desqualificados por esta racionalista “civilização ocidental cristã”: o imaginário, a fantasia, a afetividade, o lirismo e um humor lúdico e crítico, muito próximo, por vezes, da visão crítico-cômica da cultura popular.  Aliás, repetiu-se neste ano um fato que eu já havia registrado em outros festivais e concursos: a ligação com a cultura popular, na pesquisa / adaptação de narrativas de diferentes raízes  (indígenas, ibéricas, afro); ou no apelo ao folclórico, tomado como ponto de partida e com resultados tanto mais felizes quanto mais lhe foram acrescentados elementos novos e criativos capazes de fazer emergir sua teatralidade; ou de uma escrita cênica pautada nos folguedos populares e incorporando, por vezes de forma inventiva e inovadora, seu humor, sua inversão de foco/ visão da realidade, sua síntese narrativa – mesmo que às vezes correndo o risco de assim reproduzir também os preconceitos de uma visão tradicional e conservadora.

                2. No uso da narrativa e resgate da palavra em sua oralidade e valor expressivo. Não cabe aqui a discussão da intertextualidade, ou do duplo, ou do falar simultaneamente em 1ª e 3ª pessoa que marcam a literatura (e não só dramática) contemporânea. Mas a inserção de traços narrativos, ou o trabalho com a narrativa oral cênica foi uma das tendências mais marcantes. O melhor ou o pior resultado, no caso, ficou visivelmente ligado à capacidade de entender o que é uma linha de ação dramática e o que são os aspectos narrativos da ação, ou seja, de não abandonar os recursos efetivamente dramáticos e cênicos. Do que vimos, quando o projeto de encenação se sobrepôs ao texto, em vez de a ele se in-corpo-rar organicamente, a dissociação entre ambos acabou desvalorizando o texto – que assim perde seu potencial poético, mítico, mágico, mas não favorece sequer a encenação, ou seja, com prejuízo para ambos. O mesmo se dando no caso contrário, isto é, quando se enfatiza uma oralidade centralizadora, “literalizando” toda a estrutura e esquecendo que teatro é re-present-ação, isto em uma ação que se faz presença (no ator/ personagem) e presente (no tempo) e não simples “ilustração”, com a figura do ator, de cenas “contadas” ou descritas.

               3. Na incorporação / fusão de diferentes linguagens, ora gerando um espetáculo multimídia (com projeções, vídeos, formas animadas); ou com inserção de técnicas de animação (bonecos / atores); de técnicas circenses; ou com a dança, a música, a linguagem gestual /corporal como elementos ativos da expressão; ou fazendo do ator um performer, centrado em sua presença física e autobiograficamente estabelecendo uma relação pessoal e direta com os objetos cênicos e a situação em foco.

                Numa sociedade e país em que 42% da população tem menos de 15 anos – o que a indústria cultural ligada à literatura, ao cinema, ao vídeo etc. já percebeu e utiliza – falta ainda ao teatro e seus criadores progredir no sentido desejado e possível com trabalhos que seja um presente para o espectador de todas as idades.

 

       

 

 

                A FOME  TEM ROSTO         

 

Escrito como colaboração à Campanha do Fome Zero, para apresentação por grupos de Contadores de Histórias de todo o país.

Um Narrador oral contando histórias em todo e qualquer lugar, com todo e qualquer público, não é algo novo: a figura prototípica do contador de histórias de um clã ou comunidade é ancestral, e tão conhecida e apreciada quanto a daquele que conta histórias na família ou em um grupo.

Mas quando a Cátedra Iberoamericana de Narração Oral Cênica, nascida em La Peña de los Juglares, em 1975, resgata não só essa oralidade, mas passa a explorar também as possibilidades cênicas da narrativa, está com essa revalorização abrindo espaço a uma nova forma de arte e gerando um movimento que a leva de Cuba a toda a América Latina.

Entre nós multiplicaram-se também os “Contadores de Histórias”, encenando suas narrativas, alguns dos quais com trabalhos de excelente qualidade, como tenho tido a oportunidade de ver em minhas andanças por festivais de teatro de todo o país, na condição de palestrante e/ou debatedora. Constatando, assim, igualmente, as possibilidades de invenção ou reinvenção comunicacional dessa forma artística, que tem a ver simultaneamente com a memória e o imaginário (pois boa parte das histórias seguem os parâmetros tradicionais do gênero), com a imaginação (do ouvinte/ espectador, que provoca, em vez de oferecer-lhe a construção física das imagens), com a rejeição da literalidade (permitindo várias leituras), coma incorporação do movimento  (transformando-se a cada passo e a cada vez ), e exigindo um compromisso de quem fala e de quem ouve com aquilo que é dito.

Por isso, entendo o que diz Francisco Garzón Céspedes, um dos criadores dessa forma artística : “A narrativa oral cênica contribui para resgatar toda oralidade, para que sejam revalorizadas tanto a oralidade da conversação no seio da família e das relações interpessoais quanto as outras formas de oralidade não-artísticas – a do orador, do professor, do vendedor, do político, do religioso. Pode-se afirmar que é um dos mais expressivos testemunhos artísticos da insubstituível e elevada significação de toda a oralidade, …….. pois é um ato de fantasia, de comunhão, de sabedoria, de estímulo, de provocação, humildade, quebra de defesas, transparência, um ato coletivo de beleza e liberdade.” (*)

Por essas características e por sua simplicidade de encenação me parece uma forma de comunicação que merece ser mais explorada. E que já tem sido usada nos mais diferentes pontos do país (RS, MT, PE, CE, GO, DF ), inclusive como abertura de seminários, congressos  e debates sobre o tema.

 

(*) Do livro Pedagogia teatral: conceptos y métodos, org. por Concepción Reverte e César Oliva, com o material do Congresso Iberoamericano de Teatro, realizado paralelamente ao Festival Iberoamericano de Teatro de Cádiz ( Espanha ), em outubro de 1994,  por iniciativa de seu Diretor José Bablé. (N.A.)

 

                                    A FOME TEM ROSTO    

Era uma vez um rei e uma princesa. (Ih! Que história é essa? dirá você, espectador. Já ouvi essa história mil vezes! Calma. Espere. Nela se fala de uma coisa de que nunca de falava antes e de pessoas que também nunca são escolhidas como personagens ).

A nossa princesa (isto é, a desta história ) crescera alegre, bonita e inteligente, e o rei já pensava em casá-la com um príncipe que tivesse muitas terras e muita riqueza: quem sabe ele próprio talvez pudesse assim vir a tornar-se Imperador, senhor de um império?

Mas a princesa tinha um defeito terrível, aquele mesmo que ( ao que dizem ) fizera Eva ser expulsa do Paraíso: a curiosidade. Do alto de seu palácio ( os palácios ficam sempre no alto, não é? ) ouvia os ecos dos ruídos das ruas e das estradas, via, muito ao longe, confusamente, um amontoado de casinhas e ficava se perguntando: como viveria esse bando de gente que seu pai chamava apenas de “povo”? E por que não podia conhecê-los, nem eles podiam entrar no palácio, como os nobres?

Um dia, aproveitando um cochilo da aia que a acompanhava por onde fosse, escondeu-se em uma carroça que trouxera mantimentos e saiu para a cidade.

Na cidade, evidentemente, despertava a maior atenção, mas isso não a incomodava. O que a incomodou foi um fato estranho e inédito ( para ela ): as ruas, as estradas e as portas dos casebres repletas de mendigos, de mãos que se estendiam à sua passagem, de figuras imobilizadas pela desesperança e o sofrimento, de ombros curvados, vencidos pelo esgotamento. De idosos com ar tão consumido, vencido, maltratado, esgotado, que já nem erguiam a mão em pedido. De mães esmolando, súplices, o sustento para os filhos, tão cedo lançados na privação, no sofrimento, na agonia da miséria e da fome. De crianças e até bebês com rostos de velhos, que pareciam já saber que não seriam vistos, nem ouvidos, e por isso apenas olhavam com olhos tristes e apagados, e se calavam.  A princesa viu, sobretudo, seu olhar: um olhar opaco, magoado, ferido, um olhar velho e agoniado até em rostos de crianças, rostos dos quais tinham sumido a alegria e a esperança. Um olhar que apenas se retraía, e nem perguntava, ou nem olhava mais… Diante deles, sem fala, ela também apenas os olhava, sem saber o que fazer ou dizer.

Enquanto isso, no palácio, uma rainha e uma aia gaguejantes e trêmulas davam ao rei notícia do desaparecimento da princesa e pediam-lhe providências. O rei, como era de se esperar, culpou todo mundo: a rainha por não ter ensinado à princesa que lugar de mulher é dentro de casa (do palácio, no caso ), os guardas por não guardá-la, o portão por não se ter trancado à sua passagem, os pássaros e as nuvens por lhe terem posto ideias de liberdade na cabeça. Tinha que achar rápido um culpado para que ninguém pudesse pensar que ele não era o melhor rei do mundo e seu reino a mais perfeita ordem do universo. Pôs todo o exército e até sua guarda pessoal nas ruas com a missão de encontrar rapidamente a princesa e trazê-la de volta para o palácio.

Não foi difícil achá-la ( por razões óbvias ). Mas algo terrível sucedera: naquele olhar de crianças e adultos a princesa descobrira duas coisas que até então desconhecia: a fome e a miséria. E o susto e o choque foram tão grandes que ela emudeceu. E nunca mais sorriu. Os dias se passavam e a princesa não mais falava e sorria como antes. O rei se assustou muito ao vê-la emudecida de um dia para o outro sem razão aparente e começou a se preocupar seriamente: quem se casaria com uma princesa muda e triste? Seu reino e seu futuro estavam em perigo!

Alguém sugere dar a princesa em casamento a quem a fizesse sorrir e falar ( é assim que acontece em alguns contos tradicionais ), mas, para esse rei, isto era demais: e o seu sonho de ter mais terras, mais riquezas e ser Imperador?

A aia, depois de muita hesitação e medo, disse ao rei que a princesa, dormindo, falava seguidamente em “fome… fome… miséria…” mas o rei achou que isso era maluquice dela: a princesa não passava fome, por que iria falar nisso? E a fome dos outros não era problema dela! Ordenou aos médicos do reino que buscassem saber o que ocorrera e lhe prescrevessem os remédios convenientes. Uns receitaram remédios e sangrias – sem resultado. A maioria tentou não se comprometer com um caso tão inédito e para o qual não viam uma solução imediata como o rei pedia. Um deles acaba sugerindo “distrações”.

Convoca-se às pressas um “artista” que era no momento o mais bem pago bobo da corte.  Ele vem e com grande pose declara:

– Majestade, há sempre gente disposta a dar importância a coisas que não têm a  menor importância. O que ela precisa realmente é de distrações. Um regime que a impeça de ter idéias, atividades que deixem seu cérebro em repouso: ver peças leves, digestivas, dançar, ir a shows, jogos de cartas, natação, ginástica, só exercícios para o corpo. Nada que suscite a imaginação, ou a reflexão. Não sair do vulgar, do rotineiro. Falar com ela apenas sobre os boatos correntes, as novelas da TV, as intriguinhas sobre os artistas em voga, o último desfile de modas, a consulta a uma astróloga… Com esse regime seu intelecto ficará reduzido ao senso comum, pensará só o já pensado,  jamais irá pensar por conta própria ou ter ideias inconvenientes. Proponho que se crie uma Sociedade Real de Promoção do Lazer que, com as devidas verbas, evidentemente, se encarregará de…

Um conselheiro que até então ouvira atentamente, concordando com o que ele dizia, ao ouvir falar em verbas se assusta e corta:

– Já existe! O lazer há muito já se transformou em consumo, já nos apropriamos do tempo livre das pessoas, e é isso que ajuda a manter a calma no reino! A fórmula é muito antiga: pão e circo. E nós sabemos usá-la. 

– Mas na falta do pão, é preciso ampliar o circo e…

Enquanto assim discutiam, a aia convencera a rainha a buscarem por conta própria uma solução: aquele santo homem que era seu conselheiro-mor, que falava em nome de Deus e por isso tinha tanta autoridade. A rainha concorda, feliz, e manda mais uma vez chamá-lo. (Ele já ouvira falar do problema, é claro, e estava até um tanto irritado por ainda não ter sido consultado). Ouve atentamente o que lhe diz a aia e concorda:

– Realmente, ver de perto a fome e a miséria é algo chocante. Eu até entendo. Mas eu sei o que dizer e fazer. Levem-me até a princesa.

Ao chegar junto dela, inicia um longo discurso, em tom ameno, melífluo, gestos mesurosos. Mas, para sua surpresa, depois de minutos ela parece não lhe dar mais atenção. Ele vai se exaltando, imposta a voz, alteia o tom, alarga os gestos, tentando impressioná-la:

– … Minha filha, pense bem! Morto de fome! Quer melhor credencial que essa para alguém entrar no reino dos céus? Se o que condena os homens é a sua ganância, é o muito que têm e querem manter neste mundo, os que não têm nada jamais serão condenados! Se tudo lhes falta e ninguém os adula, nem os inveja, nem os confronta, não têm sequer ocasião de pecar, só têm na vida sonhos e decepções! Portanto, estamos dando a eles o reino dos céus! Depois de mortos terão uma brilhante existência além-túmulo, conhecerão emocionantes aventuras que compensarão o pouco brilho de sua existência terrena! Tirar-lhes esta oportunidade seria uma maldade!

Não consegue nada e sai dali convencido de que o caso é mais grave do que supunha.

Porém o rei já está mais tranquilo: ele sabe o que fazer quando tem um problema.  Chama seu Primeiro Ministro e avisa que, se não acharem uma solução para a mudez da princesa ( e o tom se torna ameaçador, que para esta frase o tom precisa ser sempre muito ameaçador ) cabeças vão rolar!

O Primeiro Ministro não se assusta: ele sabe o que fazer quando tem um problema.  Escreve um ofício em tom ainda mais ameaçador ao Segundo Ministro, exigindo uma solução imediata! O Segundo Ministro não se afoba: ele sabe o que fazer quando tem um problema – apesar do tom e do ineditismo do fato (uma princesa preocupada com a fome e a miséria, ora veja! Por que deixaram que ela as visse?) e, mais uma vez, decide que a responsabilidade é do Governador da província. O Governador, por sua vez, adota o comportamento de praxe: encaminha o memorando a seu Chefe de Gabinete, que, irritado, o encaminha ao Secretário Geral, que estando ocupado com a telefonista no momento, o passa ao Chefe de Departamento, que o encaminha ao Diretor da Divisão… que tem a solução desejada! Ele também sabe o que fazer quando tem um problema: manda chamar o sr. Chalaça, um funcionário seu que todos sabem ser um sujeito sério, que se preocupa seriamente com assuntos sérios, como as verbas para os ministros e governadores, os interesses dos banqueiros, a aposentadoria dos magistrados e tem ainda a grande qualidade de pensar de acordo com todas as Excelências do reino. E o Snr. Chalaça realmente não falha e escreve diligentemente um laborioso e detalhado ofício nos devidos termos:

“Considerando que os motivos invocados não são suficientemente justificáveis e abrem um precedente perigoso ( já imaginaram se todas as princesas começarem a se preocupar com a fome e a miséria do povo? )

Considerando que o problema afeta toda a ordem do reino, na qual está estabelecido há muito que a sociedade deve estar dividida em ricos e pobres;

Considerando que a legislação vigente sempre foi feita em nome e a favor dos ricos, e parte do princípio de que faz parte da natureza dos pobres serem pobres e famintos;

Considerando que dar atenção aos pobres em vez de aos ricos, que são a riqueza do país, põe em risco essa ordem, e a inverte ou subverte;

Considerando, portanto, que o problema é inédito, e de suma gravidade e importância, sugerimos que se crie uma Comissão de Notáveis… (também naquele reino criar uma Comissão era sempre a saída burocrática para fazer esquecer um assunto ou deixá-lo rolando, “em estudos” durante anos e anos ).

esquecer um assunto ou deixá-lo rolando, “em estudos” durante anos e anos ).

Lida com a devida ênfase em todas as maiúsculas, a sugestão é recebida com entusiasmo. O problema seria saber quem eram os Notáveis, uma vez que era grande o número dos que julgavam merecer tal qualificação. (E problema ainda maior localizá-los porque eram, evidentemente, sábios cuja excessiva ciência os impedia de viver, pensar e amar como todo mundo ).

Mas com o rei exigindo urgência, finalmente se reúne uma Comissão de Notáveis, em solenidade presidida pelo próprio rei. E o problema é solenemente exposto. Depois de consultas ao protocolo, a palavra é passada ao 1º Notável, autor de uma tese saudada com ahs! e ohs! em todas as Academias e que lhe valera o titulo de “Intelectual do Ano”. E ele, com a pose adequada à plateia e ao momento,  começa:

– Majestade, eminentes colegas, o fato apenas comprova minha tese: tenho sérias razões para considerar a liberdade tão perigosa quanto a loucura. A liberdade em excesso pode atentar contra o pensamento correto e único – que é o nosso – e até levar aos transtornos de uma rebelião.( A aia, que a tudo assistia escondida, tem um sobressalto: mais de uma vez apanhara a princesa olhando para o portão do palácio, como se estivesse pensando em sair e ir de novo para junto “deles”: seria o início da rebelião? Mas logo se tranquiliza ao ver que o Notável acrescenta: )

-… Felizmente, este não é ainda o caso da princesa, que se mostra apenas em estado de choque – etapa ainda sanável. 

Um suspiro de alívio percorre a Comissão: este Notável realmente sabe o que diz! Mas ele prossegue:

– Porém…! Há um porém: as  consequências foram igualmente graves e nos colocam diante de uma questão inarredável: como não há efeito sem causa, agora… cessandi causa,  cessat efectus… para eliminar o efeito é preciso eliminar a causa.

O rei assume um ar de pânico: cessar a causa? O que é que ele quer dizer com isso ? Acabar com a fome e a miséria? Impossível !!  E se apressa a perguntar:

– E como conseguir isto?

O Intelectual o encara com ar irritado:

– Majestade, de fome, miséria, essas coisas comezinhas, banais, eu não me ocupo, nem com elas me preocupo. Já dei a contribuição teórica que poderia dar. Quando tiverem um assunto realmente importante podem mandar me chamar.  Com licença.

(Você, espectador, também deve estar pensando: como é possível uma autora nem tão importante escolher semelhante assunto, em vez de tratar de um tema mais relevante, como o número de vírgulas em um escritor famoso ou a importância das formigas nas guerras do século XII ? )

O rei ainda está olhando, desconsolado, sua empertigada saída quando ouve uma voz:

– Majestade, eu, Thomas Malthus, tenho a solução!

Finalmente, a palavra mágica: a solução! O rei se apressa a dar-lhe a palavra:

– AH!… Pois então fale!

– Depois de longos anos de estudo, verifiquei que a causa real da fome está na explosão demográfica. Ou seja, a fome é produzida pelo excesso de bocas a alimentar em um reino de recursos naturais reduzidos e produção agrícola limitada: o crescimento da população se dá em progressão geométrica enquanto o crescimento dos meios de subsistência se dá em progressão aritmética.

O rei se remexe inquieto no trono: não estava entendendo nada! Mas não pode confessar isso, para não parecer ignorante.

– Sim, claro, mas então o que temos que fazer? 

– Diminuir o número de bocas a alimentar! Para suprimir a pobreza temos que suprimir os pobres!

Há um ligeiro sobressalto entre os presentes: será que ele vai sugerir um genocídio, uma matança geral? Mas ele prossegue, imperturbável: 

– A miséria, o vício, as doenças e as guerras são um mal necessário porque equilibram a relação quantidade de alimentos / quantidade de alimentados, matando um bom número. Mas isso ainda não está sendo suficiente!

Outros se apressam a concordar:

– É verdade! A cada dia nascem mais e mais pobres!

– E ainda há quem lute para viverem 60, 70 anos em vez de deixá-los morrer aos 30 ou 40!

Malthus assume agora um ar mais grave, empertiga-se, faz uma pausa suspensiva, percorre com o olhar a platéia e anuncia, em tom lento e solene, sua conclusão:

– Se a população pobre continuar a crescer assim, em breve não haverá alimentos para todos e todos nós passaremos fome!

– Ele tem toda razão, apressa-se a acrescentar um Conselheiro Real. Não podemos deixar nascer e não podemos sustentar tantos pobres! Pensem bem: antes dos 6 anos de idade, dificilmente uma criança pode fazer do trabalho ou do roubo seu meio de vida; dos 6 aos 12 anos, ainda são apenas aprendizes; com menos de 12 anos, os comerciantes de crianças e de órgãos garantem que ainda não são uma mercadoria muito vendável …

A discussão se torna geral, com todos falando quase ao mesmo tempo:

– E durante todo esse tempo eles ficam às nossas custas!

– Temos, portanto, que impedir que nasçam!

– A não ser que pudessem nos servir de alimento: uma criança gordinha entre 0 e 3 anos pode dar um ótimo ensopado ou um assado capaz de alimentar nossas famílias!

– Criança gordinha, onde, desnutridos do jeito que são, só pele e ossos?

– Não é uma boa solução: entre eles é grande o número de negros! Já pensou você ter que comer uma criança de pele negra? Sem falar no fato de que se a população negra aumentar assim daqui a pouco seremos conhecidos como um reino de negros! Temos que impedir, sobretudo, que nasçam negros, isso sim!

– Sem esquecer que isso nos obriga a produzir mais armas e a ter mais guardas, para controlá-los e garantir a nossa segurança!

– Controle da natalidade deles!

– Dito assim, soa mal: fale em “planejamento familiar” que é mais elegante.

( Eu conheço este reino, já vi esse filme, deve estar pensando o leitor / espectador de boa memória…)

Malthus, surpreso, ainda tenta falar, mas nem o ouvem:

–    Esperem! Não foi isso que eu disse! NÃAO….! Ah! Eu sou um incompreendido, um injustiçado..!

         E sai, indignado. 

         Em meio ao falatório e tumulto generalizado ouve-se subitamente um grito:

– Majestade!

Todos olham o intruso, que entrara sem ser chamado e não tem sequer cara de Notável.

– Quem é você? Como entrou aqui?

Ele se apresenta.

– Meu nome é Josué de Castro. Sou um médico e geógrafo brasileiro que…

O coro dos protestos se ergue:

– Ninguém pode ser médico e geógrafo ao mesmo tempo!

– Ainda mais com esse nome sem importância!

– E ainda mais brasileiro! Do Terceiro Mundo, uma região pobre!

Mas o rei, sabe-se lá por que, decide deixá-lo falar. (Talvez se lembre de que, nas histórias que ouviu, aparecia sempre um João Mata-Sete, um Gato de Botas, ou alguma figura assim que resolvia a questão. Quem sabe ele seria uma delas? )

– Majestade, eu não concordo com o que diz o Snr. Malthus: “Dos 14 bilhõesde terras cultiváveis no mundo, só 28% são por nós explorados. E 50% da parte não cultivada podem também se tornar cultiváveis. A fome é produto da má utilização dos recursos naturais e humanos. Temos é que fazer melhor uso das terras e aproveitar os recursos que a natureza oferece. Explorar os mares, os rios e os lagos, em que hoje buscamos apenas uma parte mínima de nossos alimentos. Com a ciência e a tecnologia podemos conseguir maior rendimento da produção agrícola. Podemos aumentar o valor nutritivo de certos produtos naturais para combater a deficiência de proteínas e a insuficiência de calorias de famintos e subnutridos. Podemos criar uma melhor conservação dos produtos para evitar os estragos e as perdas. Se habilitarmos efetivos humanos a utilizarem racionalmente os recursos que a natureza põe à nossa disposição, e que o conhecimento científico hoje permite aproveitar em escala infinitamente maior, a produção de alimentos aumentará enormemente e poderá atender às necessidades alimentares de todos. E os que hoje passam fome terão como viver e não apenas sobreviver.”

O zum-zum começa a crescer novamente entre os conselheiros reais:

– “Melhor uso das terras?” Não gostei da expressão: daqui a pouco vai falar em terras improdutivas, dizer que há muitas terras em poucas mãos, que nossa economia agrária é retrógrada e conservadora!

– “Habilitar efetivos humanos a usar os recursos naturais?” Que é que ele quer dizer com isso? Não vai ele querer vir com aquela história de “reforma agrária”, de dar terra a quem produz!

– Ou será que vai querer rever as relações jurídicas entre os proprietários de terras e os trabalhadores agrícolas, dizendo que eles são explorados, e tudo mais? Ih!… Não gostei!

– E a distribuição desses produtos? Teria que haver um plano de distribuição alimentar nas áreas carentes… e isso custaria uma fortuna!

– O pessoal dos transgênicos nos mata! Estaríamos tirando toda a sua renda!

Alguém finalmente ousa um altivo aparte em voz alta:

–   Sr. Josué! Há um dado essencial que o senhor não leva em conta: de que adianta aumentar a produção alimentar, se esses miseráveis não têm poder de compra, recursos, dinheiro para adquirir esses alimentos? Já nem falo no transtorno que daria ter que queimar ou estocar tantos produtos para não deixar os preços caírem no mercado…

Zum-zum geral ecoa:

O mercado…! Exato! O transtorno no mercado!

– O que é que o senhor vai querer propor? – emenda um segundo Conselheiro. O que outros reinos já tentaram? Distribuir terras, criar fazendas coletivas, cooperativas agrícolas, ou outros meios de eles terem sua subsistência por meio de seu trabalho? De não dependerem dos proprietários de terras – que evidentemente não podem empregar todos esses trabalhadores, nem pagar esses preços exorbitantes com que eles sonham?

Todos encaram Josué, no aguardo de sua resposta. Mas antes que ele possa responder, uma luz brilhante surge subitamente próximo a Josué, assustando o rei e despertando a atenção de todos. De dentro dela sai um velhinho de ar tranquilo e sorridente. O rei o interpela, irritado:

– Outro?!… Não estamos esperando mais ninguém! Que.. quem é você?

– Eu sou Deus.

Um dos Notáveis protesta imediatamente:

– Não pode ser. Deus não existe. A ciência provou e a sociedade aprovou: Deus não existe!

– Como não existe, se estou aqui, na sua frente, e se provo minha existência todos os dias e em todos os lugares? – responde Deus.

– Mas não pode ser, já disse. Querem ver? O senhor diz ser Deus? Então vamos verificar sua identidade. Responda às seguintes perguntas: qual o seu nome completo? Local de nascimento? Nome de seus pais? Residência? Número de sua carteira de identidade?

Deus se cala e apenas sorri.

-Veem? Não tem resposta! Se perguntarmos por seus dados pessoais – peso, altura, cor da pele, dos cabelos – também não vai saber responder. Quando tiver essas respostas, apresente-se e aí então será ouvido. Agora retire-se, que ninguém aqui está disposto a ouvi-lo!

– Eu estou!

Susto geral: a princesa entrara sem ser pressentida, e, mais que isso, falara! Enquanto todos se entreolham, buscando refazer-se do susto, Deus começa a falar:

– O eixo do problema de vocês é a Justiça. Se alguém tentar encontrar a Justiça entre vocês, onde poderá encontrá-la, me digam? Vocês não saberiam responder. De tanto ser enxotada ela acabou ficando cada vez mais esquecida, até que a Desigualdade se instalou aqui e a expulsou de vez. Se forem procurá-la entre os grandes, não a encontrarão porque ela atrapalha seus interesses; se forem buscá-la entre os pequenos, verão que para eles a justiça é apenas sonho ou desejo; se a buscarem entre muitos dos que se dizem justos e justiceiros, só a encontrarão em suas palavras, mas não em suas ações. De sorte que a Justiça não achou aqui onde pousar e foi pedir abrigo à Esperança – e aqui neste reino não se encontra mais nem rastro dela.

O Rei se adianta e declara:

– O que o senhor seja-lá-quem-for diz nos ofende! E não tem nada a ver com o problema em causa!

Ao que Deus retruca, com a mesma calma:

– Como não? Tem tudo a ver. Durante seis dias criei um mundo capaz de abrigar o homem e no sétimo dia, ao criar o homem, dei-lhe esta Terra para que dela fizesse sua casa, sua morada. Nela haveria sociedades, com os homens juntando-se em grupos em que cada um visse no outro um socius, um aliado ou irmão. Eu não criei os homens divididos em ricos e pobres. E o “crescei e multiplicai-vos!”  foi dito para todos. Mas alguns poucos foram se apropriando do que deveria ser de todos: hoje chegam ao cúmulo de querer ser donos da terra, do ar, da água, do espaço e cobrar por eles. Para ter lucro e acumular riqueza, acumulam miséria: concentram os bens em suas mãos, excluindo os demais. O ganho e o dinheiro são seu único valor: menosprezam o ser humano e desprezam a vida.

O burburinho sobe entre os conselheiros:

– Esse sujeito é perigoso! E se ele sai dizendo isso por aí?

– Vê o que ele condena: é tudo que nós fazemos!

– Esse cara que se diz Deus está contra nós!

Enquanto isso Deus continua sua fala:

– Aos economistas caberia a gestão dessa Terra, dessa casa de todos. Mas o que eles fazem? Preocupam-se apenas com o crescimento econômico e deixam de lado o desenvolvimento social; trabalham pelo lucro de poucos e não em nome das necessidades de muitos; usam essas necessidades para garantir a exploração e a dominação. E fazem-se de surdos quando alguém fala em dar aos excluídos cidadania e uma vida digna, acesso à terra e ao crédito, assistência técnica e cultivo adequado, que garantiriam não só a sobrevivência deles, mas as necessidades de todos. 

É quando a princesa que a tudo ouvia atenta e em silêncio solta um grito:

– Eu quero falar!

A perplexidade se desenha nas sobrancelhas franzidas e no olhar interrogativo dos conselheiros e do rei: ela ia falar? E o que iria ela dizer?

– Agora entendo o que se passa, diz ela. E vejo que a fome e a miséria não são uma fatalidade, como pensei – ideia que me entristecia e não ser deixava ser feliz. Mas já sou maior de idade, posso escolher meus caminhos.  Por isso, Deus, Josué, quero ir com vocês ao encontro dos que têm fome e sede de Justiça para, todos juntos, irmos buscá-la e trazê-la conosco.

(Pronto! Meteram essas ideias inconvenientes na cabeça dela, pensam os conselheiros e o rei, muito aflitos. E mais aflitos vão ficando à medida que Deus acrescenta: )

–   Não estaremos sozinhos. Lá pelo ano de 2008, Jacques Diouf, Diretor da FAO- uma Organização para a Agricultura e a Alimentação – já estará dizendo ao mundo que modificando a infraestrutura atual, usando a tecnologia e estimulando a pesquisa, será possível aumentar a produção alimentar, ampliar o acesso aos alimentos, reduzir ou eliminar a fome e a miséria. E que adotar os meios e medidas urgentes para isso é apenas uma questão de vontade política.

A princesa parece alegrar-se muito com o que ouve:

–    A Esperança me diz que um dia serei Rainha e poderei ter, no meu reino, conselheiros e guias conscientes e dispostos a trabalhar no sentido que vocês falam! E os que hoje são excluídos e famintos estarão conosco. E sua força, sua energia alimentará nosso esforço, nossas iniciativas, nossa luta contra os que tentarem nos impedir, até o dia em que, como diz Deus, a Terra possa ser a morada de todos, e houver em todas as mesas o pão e o vinho celebrando sua união.

Vai até Deus e Josué, dá-lhes a mão e, diante da surpresa que imobiliza os demais, de mãos dadas caminham para as portas, que se abrem, deixando entrar uma luz clara e brilhante – anúncio da Esperança que os leva a pôr-se a caminho.     

Longínquo ainda, mas já audível, começa a ouvir-se o canto que vem da terra e vai crescendo: (*) 

                                 Debulhar o trigo

                                 Recolher cada bago do trigo

                                 Forjar do trigo o milagre do pão

                                 E se fartar de pão…

                                 Decepar a cana

                                 Recolher a garapa da cana

                                 Roubar da cana a doçura do mel

                                 E se fartar de mel

                                 Afagar a terra

                                 Conhecer os desejos da terra

                                          Cio da terra propícia estação
                                           E fecundar o chão…

Eles saem, deixando o rei e seus conselheiros se entreolhando, aflitos, a braços agora com um novo e sério problema: como manter essa princesa bem longe e impedir  que ela possa um dia chegar a ser rainha daquele reino?

Mas isso já é uma outra história… 

 

(*)  ( “Cio da terra” – Milton Nascimento / Chico Buarque )   

   

                      Da água nascemos. De líquida seiva – sangue, leite, amor – é feita a matéria que nos faz dar vida. Mas… e quando esta vida escorre entre os dedos, deixando vazias e tristes as mãos? Quando dessa água só o que guardamos é o que vem da sede, lágrima e suor?

                                 Da pergunta inquieta nasce a insubmissão.

 

Quando iniciei nestes termos a redação do Manifesto do Dia Internacional da Mulher em 1989, não me dei conta, de imediato, de que estava realizando assim longínquo trajeto que trazia à tona imagens e relações que fazem parte do patrimônio imaginário da humanidade. Nem de que assim religava, em um só tecido, os fios que compõem a imagem da mulher, relembrando a mítica e permanente relação Mulher-Natureza – que ao longo de séculos vem alimentando a produção literária e artística – mas também afirmando, ao fazê-lo em tal data, que a mulher é História e faz História.

No entanto, já se disse que “as mulheres não têm História” e por isso “nada que as reúna ou lhes dê unidade”. Poderíamos retrucar lembrando a unidade maior – nossa própria condição mulher e todas as estruturas que essa condição envolve. Ou perguntar: por que este rosto dividido e fragmentado nos persegue quando iniciamos a busca de nossa identidade? Por que os próprios estudos e pesquisas que reavaliaram a condição da mulher na sociedade, a evolução de sua situação, ou a imagem que dela se tem, fizeram de sua análise um caleidoscópio que, a cada figura apresentada, desmanchou ou ocultou as demais?

Seguindo um caminho e postura que, como veremos, são considerados “femininos”, vamos buscar, a partir de um retorno às origens, um aprofundamento nas questões centrais do imaginário em torno da figura da mulher, revendo a trama de suas representações, e a dinâmica da identidade e diferença que alicerçaram discursos e práticas, para apreender, no movimento do Tempo, algumas constantes ou denominadores comuns que permitam perceber e captar forças vitais de seu próprio devir.

 

 A Mulher no Mito

 

Reinserindo, de início, a mulher na História a partir dos mitos mesmos que a definiram como Natureza, e com base nessa “modelação” definiram suas relações consigo mesma, com os outros e seu papel neste jogo de relações.

Sem maiores teorizações, cabe lembrar que o mito, ao contrário da visão ocidentalizante que o reduz a uma fábula ou ficção, não é o “conteúdo” de um conhecimento: é “a forma e estrutura do conhecer” (Cassirer), “uma busca de equilíbrio no mundo que é, ao mesmo tempo, conhecimento do mundo” (Lévi-Strauss). O mito é, essencialmente, consciência de unidade, atitude unitária do ser humano diante do universo (ser + mundo = uma só coisa), e, por tal, realização simbólica de plenitude.

Essa atitude estrutura toda a vida comunitária: “A vida social se resolve nesta liturgia de celebração unânime e anônima, em que a manutenção e equilíbrio de todo o cosmo depende do modo pelo qual cada um desempenha seu papel”. Donde, “a primeira consciência pessoal é sempre engajada e relativa, apreendida na massa comunitária e nela imersa” (Gusdorf). Ou seja, o eu não se afirma para e diante dos outros, não é pessoa e sim personagem: o ser humano só se conhece pelas relações que mantém com os outros, só existe na medida em que exerce um papel no jogo de relações e só se situa em relação a estas. E todo o grupo social se dedica a realizar uma liturgia de repetição em que cada momento se con-forma ou se modela por um ritual estabelecido de uma vez por todas no tempo primordial.

A referência a esse tempo primordial ( “Naquele tempo…”) torna o mito intemporal, estrutura ontológica de uma realidade dada: o mito responde a toda questão antes mesmo que ela se proponha. Sua função consiste em revelar modelos e fornecer assim uma significação ao mundo e à existência humana.

Como se situa a mulher neste universo como qual é apenas una? Qual o seu comportamento e seu papel se podem ser apenas imitação de um modelo trans-humano e/ou repetição de um “enredo” exemplar? Quais as primeiras respostas, já dadas, que a mulher encontra ao se perguntar “quem sou eu”?

As primeiras imagens que temos marcam aquele plural (as Moiras, as Erínias, as Nereidas, as Sereias, as Musas, as Horas, as Valquírias, as Amazonas, as Hárpias, as Ninfas…) aquela indefinição ou ausência de limites que identifiquem e personalizem. Uma “identidade” que se caracteriza apenas por um pertencer a – como posteriormente a que descreveria a identidade cultural, social ou grupal – e que marca também sua con-fusão com o natural, que já se carrega da crença universal em seres maléficos ligados à valorização negativa do animal (as deusas taurocéfalas de cornos bovinos; a Esfinge – rosto da mulher, corpo de leão, asas de águia). E  reitera igualmente o valor negativo de suas identificações, pois nessa Natureza/ Mulher tudo ameaça o frágil ser humano que dela depende para viver…ou morrer.

Daí no imaginário humano sua recorrente identificação com a água, que lembramos na epígrafe, ser sobretudo a água negra, “mare tenebrum” substituto simbólico da morte. Sua primeira qualidade é seu caráter heracliteano: água = devir hídrico (“não nos banhamos duas vezes no mesmo rio”), convite à viagem sem retorno (fontes e rios jamais voltam à origem), ou elemento mineral que se anima, como o dragão, monstro ante-diluviano, nascido da água e semeador da morte. Na lenda cita da mulher-serpente, a Echidna, ela é a mãe de todos os monstros: a Quimera, as Górgonas, o Cérbero, o Leão da Neméia, a Hidra de Lema, que guarda até no nome sua pantanosa e mortífera origem e qualidade. Para Jung, a Echidna é “uma massa de libido incestuosa”, pois deitou com seu filho, o cão de Gerion, para gerar a Esfinge. Igual figura é Loki, a divindade nórdica de todas as fraudes e maldades, mãe do lobo Fenris, da serpente Midgard e de Hela – a morte.

Já se disse que “a Odisséia é a epopéia da vitória sobre os perigos das ondas, bem como os da feminilidade”, pois são negativos, por sua fatalidade, as sereias, Cila, Calipso, Nausicaa e Circe a mágica, que conduz Ulisses aos infernos e lhe permite aí saber sua própria sorte.

A psicanálise mostra como é permanente e frequente o “complexo de Ofélia” – o pesadelo humano do afogamento, em que o mar, eterno símbolo materno, fascina para engolir e incorporar a si o incauto. Entre nossos índios, Uiara, a Mãe-d’água (…), mantém a mesma imagem; também na etnografia religiosa negra as orixás de água – Yemanjá, Oxum – são exigentes e ambivalentes, necessitando serem permanentemente aplacadas ou homenageadas para dispensar seus favores.

Por extensão, a cabeleira, signo microcósmico da onda, flutuante, ondulante, como o mar e seu movimento. Igualmente o espelho, lembrando que a água é o primeiro espelho ( o mito de Narciso) e que olhar-se é visto como um “ofelizar-se”. O mito de Actéon reúne de maneira admirável esses elementos, a água negativamente valorizada, arquétipo da mulher fatal, o espelho, a morte, a feminilidade: Actéon, bravo caçador, surpreende Artémis ( Diana) que, os cabelos soltos, se banha num lago, mirando-se nas águas; Artémis, para puni-lo, o transforma em veado que é, a seguir, estraçalhado por seus próprios cães, deixando seus restos insepultos vagando como sombras gementes nas grotas. Ainda hoje, entre nós, nos rituais de Umbanda, Oxum, dominadora das águas doces, dança com mímica de quem se banha no rio, penteia a cabeleira, alisa a face e olha-se no espelho, sacudindo seus colares e braceletes…

Também o arquétipo do fio vem sobredeterminar subrepticiamente a cabeleira – além de signo da onda, fio natural dos primeiros laços. As Moiras gregas, Cloto, Láquesis e Átropos, tecem o fio da vida, ou seja, são senhoras do destino, decidem a sorte caberá a cada mortal, o quanto ele irá viver, e qual o seu inescapável destino, que será escrito em um papiro; e no tempo marcado, o fio será cortado. A própria palavra moira significa parte ou quinhão, o destino que cabe a cada um. Os laços, os nós, as cordas caracterizam as divindades da Morte: Yama e Nirrti, deusas védicas da morte, são fiandeiras ou cortadoras de fios; Ishtar, a deusa babilônica, senhora da catástrofe, “ata ou desata o fio do mal e do destino” – imagem que Humberto Mauro inteligentemente retoma em seu filme “A velha a fiar”. Na própria Odisséia o fio é o símbolo do destino humano, associado ao labirinto, perigo de morte. Também no mito de Ariadne, esta  será a doadora do fio que permitirá a Teseu sair do labirinto e escapar da morte. A própria etimologia lembra que fascinum, o malefício, se enraíza em fascia, laço. E a psicanálise lembra Aracné, uma das Parcas (as equivalentes romanas das Moiras gregas), ao fazer da aranha e sua teia de fios o símbolo do enredamento mortal.

Ainda feminização da água, arquétipo do elemento aquático e nefasto, é o sangue menstrual, “água negra da feminilidade”; sangue que não só marca o tempo da menstruação, como, por isomorfismo com a mancha sangrenta, se matiza com nuances moralizadoras, gerando o arquétipo da culpa que persegue as mulheres – do Gênesis ao Apocalipse, “pecadoras”… Tanto que é diverso o sangue dos deuses: “o sangue celestial da deusa (Afrodite) derramou-se, o ícor, que corre nos deuses bem-aventurados… que não têm sangue e por isso são imortais” (lliada – Livro V). (Nos próprios termos mortais / imortais a presença, definidora, da morte). A deusa hindu Kali ou Kala é representada vestida de vermelho, levando aos lábios um crânio cheio de sangue, de pé sobre uma barca que navega em mar de sangue; e a etimologia registra a correlação kala (= morte, destino), com kali (azar) e kalaka (manchado, sujo).

Mas a menstruação, “água-mãe”, é periódica, ligada ao fluxo lunar, ao qual a água também se submete. Ao reintroduzir a temporalidade, reintroduz a primeira medida humana do tempo: a Lua, com suas fases, suas mutações. Para os mexicanos, iroqueses, babilônicos, a mesma divindade confunde as águas e a Lua; o isomorfismo das águas e da Lua é ao mesmo tempo, uma feminização, cujo elo é o ciclo menstrual. A Lua está, pois, indissoluvelmente ligada à feminilidade e também à morte: a Lua é “o lugar dos mortos”, a lua negra “o primeiro morto”, Lilith, a “alma negra do mundo e da morte”. Como é o isomorfismo Lua-menstruações que alicerça inúmeras lendas universais em que a Lua, ou um animal lunar, se torna o primeiro marido de todas as mulheres. É também a Lua ou um animal lunar (a serpente ou o dragão) que causa a queda – eufemização da morte, terror do abismo, do nada, minimizado em medo da vagina e do coito (“a vagina desdentada” dos índios Matakos, Argentina; o ventre como microcosmo do abismo; as entranhas, tortuosas, como labirinto vivo). É ainda a esse isomorfismo do corpo feminino que se liga à imagem da Mãe Terrível – “ogra que fortifica a interdição sexual; a misoginia da imaginação se introduz na representação por esta assimilação da menstruação e dos perigos da sexualidade ao Tempo e à morte lunar. A Mãe Terrível é o modelo inconsciente de todas as feiticeiras e velhas horrorosas que povoam o folclore e a iconografia” ( Gilbert Durand).

Em suma, todo este simbolismo dito “noturno” é animado pelo esquema heracliteano da água que foge; ou da água cuja profundidade ameaça com o negror de seus abismos; ou do reflexo que duplica a imagem no espelho, como a sombra duplica o corpo; ou da água negra, o sangue, senhor da vida e da morte, que mantém a vida circulante no organismo ou escapa, pelas feridas, deixando espaço à morte; sangue que, na mulher, com seu fluxo periódico e constante, é o primeiro relógio humano, ligado à morte também mensal da Lua e, por isso, primeiro signo humano correlativo do drama lunar. Drama que manifesta a angústia humana diante do TEMPO, nefasto e mortal, Cronos devorador dos próprios filhos, ou inquietante e perigoso ao animar-se teriomorficamente. E diante da NATUREZA, dominadora e envolvente, Mãe terrível a ameaçar com o extermínio ou a reabsorção em seu corpo de água e de terra.

Se o mito tem função estabilizadora; se Tempo e Natureza são “deuses” pressionantes e terríveis, que exigem sacrifícios e preces amáveis, com libações e a fumaça das oferendas e a quem “os mortais” (…) têm que “conquistar pelas súplicas quando alguém transgrediu e errou” (Ilíada – Livro Xl); se a transgressão é, pois, vivida como erro a ser punido ou resgatado, onde a possibilidade de ultrapassar os limites que mantêm o ser humano “amarrado” ou “atado” (…) àquele tempo primordial, e confundido com uma Natureza-mãe dominante e perigosa? Na festa, por exemplo, via-se o mundo pelo avesso, ampliação e desregramento das atividades humanas. Mas Freud bem assinala que era um excesso permitido, se não ordenado, uma violação solene de uma proibição (como o são, ainda hoje, o carnaval e as “brincadeiras” folclóricas): “O recurso ao sagrado visava, por meio de um desequilíbrio momentâneo, o estabelecimento de um equilíbrio benéfico aos seres e às coisas”, desgastando apenas os excessos que poderiam levar à transgressão.

Mas a imitação do gesto paradigmático tem também um aspecto positivo: “O rito força o homem a transcender seus limites e situar-se ao lado dos deuses e heróis, não se traduzindo, portanto, em “eterna” repetição da mesma coisa: graças ao modelo exemplar revelado pelo mito, o homem se torna, por sua vez, criador.” (Mircea Eliade)

 

A descoberta de si

 

Repetir um gesto é retomar um papel. À consciência substitui-se a lembrança, a imagem do que fomos. Se voltamos a repeti-lo mais e mais, este gesto vira hábito. Nossa preguiça nos convida aos automatismos do hábito. Mas nossa necessidade de ser nos incita a quebrar o rito para retornar à consciência. E se Mnemósine (a Memória) é a mãe das Musas é porque marca, neste retorno à consciência, uma atitude essencial à criação artística, científica ou literária, estreitamente ligadas a um sentimento do novo, da descoberta, da presença de si.

Presença: “Na Natureza há muitas maravilhas, mas a maior de todas é o homem” (Antígona, de Sófocles). Auto-afirmação humana, nascida do próprio tempo, através da mentalização da experiência vivida, que vai levar a uma reordenação da realidade, a uma tomada de posse da realidade pela reflexão. Re-flexão: um voltar-se sobre si mesmo. “Conhece-te a ti mesmo”, dirá Sócrates definindo a nova tomada de consciência. À leitura direta do mito substitui-se decifração indireta da Razão emergente (Édipo e a Esfinge…) que, por meio de sua linguagem (o Logos) desdobra a apresentação física das coisas em sua representação. Ao monismo do mito – o Tao, o rito dos Vedas, o Moira grego – substitui-se uma inteligibilidade plural, abertura a muitos possíveis, que levaria ao caos se não houvesse um princípio capaz de reunir seus dados dispersos. O princípio unificador dessa nova afirmação humana é a reciprocidade do universal e do individual na noção do direito e da lei: do mando mais ou menos indiviso da sociedade primitiva passa-se à lei escrita, cobrada por um sujeito de direito, diferente dos demais e cujas relações com os outros estão esquematizadas em um formulário ou código universal: a Creonte, que lhe pergunta por que se atreve a desobedecê-lo, Antígona responde: “Porque sua lei não foi Zeus que a promulgou, nem a Justiça, companheira os deuses subterrâneos”. O consentimento mútuo, baseado na tradição, dá lugar ao senso da objetividade consciente. “Quem é você?” pergunta o coro das Danaides ao Rei dos argivos, “um simples particular, um arauto portador da vara sagrada ou o chefe da cidade?” (As Suplicantes, de Ésquilo). Nas Eumênides (também de Ésquilo), as Erínias, que perseguiam com sua cólera a Orestes, assassino de sua mãe (…), se lamentam: “Ah, jovens deuses, vocês pisotearam as leis antigas que nos arrancaram das mãos!” ( jovens/antigas, marcando a transição) até que, persuadidas por Palas Atenéa, aceitam a instituição de um tribunal, o Areópago, formado “pelos melhores cidadãos de Atenas” e que, “sem anarquia nem despotismo” se encarregará de “conduzir a cidade ao reto caminho da justiça e da sabedoria”. Ou seja, o Areópago é já o direito regido pela polis nascente, a cidade, i.e, pelos cidadãos. E a lei, expressão da generalidade, é também criadora de individualidade, respondendo cada um por seus próprio atos, quer na submissão, quer na transgressão, deliberadas, às normas. Electra, empenhada em vingar o assassinato de seu pai, Agamenon, por sua mãe, Clitemnestra, responde a sua irmã que a adverte de que “pode custar caro seguir sua própria lei” (…): “Não há pior inimigo que uma reflexão capengaMinha decisão já está tomada e não é de ontem” (Electra, de Sófocles).

Reflexão + tempo = História. Mas a consciência histórica, se consciência de movimento (passado – presente – futuro), de um devir ambíguo, em aberto, é, em si, dramática. A perda do lugar ontológico anterior, garantido pelo mito, mas destruído pela reflexão objetivante, distanciadora (ob-jeto = algo diante de) é sentido como transgressão e conflito, e gerador de insegurança e angústia. Não é por acaso que a tragédia nasce deste abalo nas crenças tradicionais: o Tempo, que no drama lunar se ligava à morte, ora se liga à História – rememoração do passado, anseio (dramático) de futuro. Também dramática é a separação daquela Mãe-Natureza, Jocasta agora estranha, da qual é preciso afastar-se para ir adiante, Édipo exilado do convívio anterior e contemplando, com olhos cegos, um futuro desconhecido. E os ritos de disjunção, de separação, vão falar dessa nova angústia do ser humano diante do Tempo e da Natureza.

Anseio que induz à luta, trágica que seja, nesse duplo tempo, simultaneamente divino e humano, em que cada elemento é ambivalente, contraditório, “ao mesmo tempo convite à conquista adaptativa e recusa que motiva o dobrar-se assimilador” ( Bachelard ) Tempo em que a própria mudança é, em si, ameaçante: “O que vou me tornar? O que fazer? O que resolver?

E a história do pensamento ocidental, do dualismo de Platão a Descartes, vai passar a ter, como eixos, a disjunção, a dicotomia, a busca da transcendência, em um pensamento que procede por antíteses e cujos esquemas e arquétipos serão dialéticos: ascensão contra a queda, luz contra as trevas, etc. marcando a antítese maior Eu-mundo, o “movimento anti-natureza” (Sartre), a desconfiança em relação ao “natural” e ao dado (que gera a dúvida), a vontade de distinção e análise.

A espada, o cetro (também símbolos fálicos), a potência, a verticalidade, a ascensão (antítese da queda sempre possível) valorizam toda elevação; o Olimpo (etimologicamente, o alto) exemplifica a virilização da potência de Zeus “todo-poderoso”, que se repete na do rei, do chefe; pois a tripartição do poder social indo-europeu – sacerdotes ou mágicos/guerreiros/produtores – demonstra a virilização monárquica da potência que é, antes de mais nada, real, e que garantirá a LEI DO PAI, em uma sociedade que se funda e se afirma como patriarcal. O chefe (etimologicamente, de caput = cabeça, o poder representado pela cabeça); os pássaros – a águia, o galo, o abutre, a pomba, ou, por isomorfismo, a asa, a flecha, falarão dessa caminhada e empenho de subida e elevação, de chegar ao alto, que é também lugar de Sol, luz, corrente aérea. Imagens fulgurantes ou imagens “viris” marcarão esse impulso de transcendência, gerado pela necessidade de distinção. Toda transcendência será sempre armada (espada, flecha, maça) e busca, ao mesmo tempo, de poder. Toda personalidade em ascensão terá o rosto “iluminado”, e sua impressão virá do olhar, gerando o isomorfismo olho-visão-transcendência, que já se anunciava na imagem do Sol como “olho de Zeus”, ou que se mantém na do Verbo divino como “luz que resplandece nas trevas”, ou em Freud, para quem o super-ego é “o olhar inquisidor da consciência moral”.

Confrontando-se aos símbolos noturnos, símbolos ascensionais e luminosos vão assinalar a (re)conquista de um poder perdido ou ameaçado pela queda: Teseu vence as Amazonas, mas, foi agarrado ao fio da vida que lhe deu Ariadne que conseguiu vencer o Minotauro devorador e escapar do labirinto para a luz. Ao lado da postura e caminho descritos, uma outra atitude imaginativa diante do Tempo vai também se esboçando e afirmando, ainda que mais tímida ou menos ostensiva: em vez de voltar-se para o exterior, e buscar a transcendência, volta-se para o interior e opõe ao Tempo, à fluidez e a morte, as constantes rítmicas que fenômenos e acidentes ocultam em um plano cíclico que alguns insistem em chamar de “eterno”. Nesta atitude Cronos e Tanatos são unidos a Eros, o Desejo, “que arrasta atrás de si a seu irmão, Tanatos” (pois o desejo, se impulsiona adiante, é também sentido como ameaça e destruição) buscando captar as forças vitais da transformação e do devir. Ou seja, em vez da antítese anterior, da agressividade e luta contra a morte a busca de uma síntese que seja união pela vida, em nome da vida, a libido invertendo, a partir do interior, as imagens da morte, da carne e da noite. E, espelhando a determinação histórica e a dimensão política da mulher, o papel social da mulher na polis nascente, confinada ao gineceu e a sua missão de “cuidadora” ou de “repouso do guerreiro”.

A inversão se dá pela atribuição de valores afetivos diversos aos rostos do Tempo,  i.e. pela busca e descoberta do que há de permanente dentro da fluidez temporal pelo esforço de síntese das aspirações ao além da transcendência com as intuições imanentes de devir. O objetivo deixa de ser a elevação aos cimos e se torna a penetração até o âmago; às técnicas de ascensão sucedem-se as de escavação ou exploração das profundidades, da intimidade; a pureza passa a ser a da ingenuidade (in-genuus=o não nascido), da imediatez original, do “encantamento” diante de; à necessidade de proteger-se com couraças se opõe a tentativa de desaprender o medo, confrontando à sempre possível queda a igual possibilidade de uma descida lenta a uma intimidade cálida e deleitosa (se atentarmos à dualidade oriental Yin/Yang encontraremos as mesmas características). Como um dos mais significativos aspectos dessa mudança de vertente imaginária, em vez da valorização exclusiva ou predominante da cabeça, o interesse e afeição por todo o corpo – imaginação do corpo que é, ao mesmo tempo, sexual, ginecológica e digestiva: os simbolismos do leite, dos pomos, dos alimentos terrestres vão fazer contraponto aos fantasmas de involução no corpo maternal. As Grandes Deusas que fazem paralelo ao todo-poderoso deus de imaginação religiosa da transcendência são não só benéficas, reasseguradoras, doadoras, como protetoras do lar e da maternidade. E as noções de riqueza e de pluralidade vão estar ligadas às figuras femininas que representam a fecundidade, ou a profundidade telúrica ou aquática. (Gilbert Durand)

É importante assinalar que o processo eufemizante (assinale-se a etimologia…) que substitui a antítese da outra vertente imaginativa, é um processo de dupla negação, tal como o encontrado nas narrativas populares que mostram o ladrão roubado, o enganador, enganado, etc. Processo que consiste numa transmutação de valores: eu enredo o enredador, mato a morte, i.e. uso, como instrumento, as próprias armas do adversário. Ou seja, é por inversão dos valores tenebrosos que, por ex. entre os gregos, escandinavos, iroqueses, tupis, a noite é “divina”, “tranquila”, “sagrada”, que a água profunda, multicolorida, vai se ligar à feminilidade maternal, à valorização positiva da mulher, à Natureza enquanto fecundidade e doação, ao centro como lugar de síntese e encontro. Sobre os esquemas de deglutição ou devoração que marcavam a mulher fatal e funesta, projeta-se a imagem materna, matéria primordial, ora telúrica, ora aquática (mãe, mater, matriz lembra a etimologia).

 

 As Narrativas Fundantes

                   

                    Nessa imagem de mundo, virilizada e heróica, onde a mulher?

Nas narrativas fundantes, que Canclini destaca nas primeiras “etapas de construção das identidades”, a narração de “acontecimentos fundadores”, quase sempre relacionados à “apropriação de um território e conquista desse espaço” – algo que pode ter leitura real ou figurada. Entre os “jovens deuses” de que falamos destacam-se ApoIo, o “deus solar” e Palas Atenéa, deusa armada, saída do machado de Hefaístos e da cabeça de Zeus, mestra das armas e da Sabedoria; sua “muito ornada égide, de terrível aspecto, é toda guarnecida com o Pavor. Nela se encontram a Discórdia, o Valor e o Ataque, sedento de sangue (…) e a cabeça (…) da Górgona, horrível e amedrontadora…” (IIíada – Livro V). Ferozmente virgem (…), cega a Tirésias apenas por ter ousado vê-Ia nua no banho; e o templo erguido em sua homenagem, o Partenon ( parthénos = virgem) marca este seu atributo essencial. Sua espada não é só de guerra, mas também “cortadora de fios ou laços”. É descrita sempre na Ilíada em imagens que falam por si, como “a estrela da qual saem muitos raios”, ou “a de olhos brilhantes”, ou “a dos sábios conselhos” – marcando a citada relação entre a contemplação iluminada e o discurso eficaz. Não admira, pois, que no julgamento de Orestes, que lembramos, o defenda nestes termos: “Eu não tenho mãe a quem deva a vida. Eu sou em tudo e por tudo a favor do macho... e sem qualquer dúvida do lado do pai. Por isso não vingarei a morte de uma mulher que matou o homem que mantinha sua casa” (As Eumênides – Esquilo).

Mas quando, nessa sociedade já mais humana, os deuses começam a antropomorfizar novos traços, na representação masculina dominante começam também a definir-se três imagens de mulher, de que seriam ilustração viva três das maiores deusas do Olimpo: Palas Atenéa, a guerreira / lutadora assexuada e virilizada, negando a mãe e negando-se (virgem) à própria sexualidade, impondo-se pelas armas, ou pela “cabeça”, isto é, pela persuasão e sabedoria; Afrodite, a sedutora, que, excitando a paixão e o desejo, faz… “perder a cabeça”; e Hera, a esposa e mãe, que só existe em função e a serviço de seu amo e senhor, bem como da manutenção de sua casa.

Afrodite (a Vênus latina), “a amante da alegria” “proclama a atração dos corpos cheios de suco”, (pois) “todo homem, diante de virgens de delicadas formas, lhes lança um olhar encantado, vencido pelo amor” (As Suplicantes, de Ésquilo). Deusa de Beleza e do Amor,  nasceu, segundo Hesídio, da espuma do mar fertilizada pelos genitais de Urano, que Cronos havia aí atirado após sua rebelião contra o pai. Apenas pôs os pés na praia, na ilha (…) de Cripis, sob eles brotaram flores (…); e vieram a seu encontro as Horas, as Graças, Peitó, a Persuasão e Potos, o Desejo. Vestiram-na com leve e esvoaçante túnica, enfeitaram-na com colares e braceletes e lhe deram um cinto que continha todas as graças, todas as alegrias, os suspiros que persuadem e os silêncios dos amantes… Por este cinto era capaz de levar à paixão até o mais sábio ou arredio dos homens. Pois, para os mortais, suas “loucuras” vêm sempre de Afrodite. Não é sem razão que o nome da deusa vem de aphrosyne= loucura (As Troianas, de Eurípedes). Apenas apareceu no Olimpo, todos dela se enamoraram pela beleza de seus olhos, seu fascinante sorriso e harmonia de gestos. Homero a descreve como “uma deusa tímida, não daquelas que governam as guerras dos homens” (Ilíada-Livro V); mas “o próprio Zeus, que é todo-poderoso com os outros deuses, é escravo de Cipris” (As Troianas, de Eurípedes). De seus muitos amores tem vários filhos, entre os quais Eros, Anteros e Enéas, o guerreiro.

Já a majestosa Hera, “a de olhos bovinos, irmã e esposa de Zeus”, assim se autodefine: “Eu me orgulho de ser a melhor das deusas, por dois motivos: por meu nascimento (i.e., por seu pai) e porque sou chamada tua esposa e tu reinas sobre todos os mortais” ( Ilíada – Livro XVIII). Concebida como modelo de virtude e fidelidade, era representada tendo nas mãos uma romã, símbolo do casamento e de fecundidade. Era a deusa protetora das uniões conjugais. Tal era a sua dependência de Zeus que não só a ele se submetia – mesmo discutindo com ele ou se mostrando ciumentíssima de seus constantes amores, como, ao tentar gerar por si só um filho, em revide ao nascimento de Atenéa gerada só de Zeus, dá à luz um filho coxo e disforme (Hefaístos).

Importa aqui assinalar não só que essas representações assinalam o papel da mulher em uma sociedade patriarcal, (i. e, tendo como referencial o homem), mas também que esses rostos femininos não se somam; pelo contrário, são alternativos, ou mesmo rivais. O famoso julgamento de Páris o ilustra: no casamento de Tétis, todos os deuses foram convidados, menos Eris, a Discórdia – por razões óbvias… Despeitada, ela faz cair sobre a mesa do banquete nupcial um pomo de ouro com um bilhete: “À mais bela”. Grande disputa se ergue entre Afrodite, Hera e Atenéa. Zeus, para resolver a questão, manda que Hermes procure “o mais belo dos homens”, Páris, para que julgue qual das três merece o presente. Levadas a sua presença, cada uma lhe oferece algo para que decida a seu favor: Atenéa lhe promete virtude e sabedoria; Hera, o domínio da Ásia; Afrodite, a mais bela mulher da terra. Afrodite leva a melhor. E Páris virá realmente a conseguir Helena, gerando a guerra de Tróia, na qual Atenéa e Hera entrarão a favor dos gregos, e contra Tróia, defendida por Afrodite.

Cada deusa se mostra ciosa de seus atributos, mas também invejosa dos atributos da outra, que só podem ser tomados “por empréstimo”: quando Hera, para interferir na guerra de Tróia, contrariando Zeus, decide armar um plano de fazê-lo “deitar-se com ela para o amor e assim conseguir lançar sobre seus olhos um sono quente e gentil”, apesar de toda a sua beleza, é a Afrodite que vai pedir: “Dá-me a beleza e o encanto com que conquistas todos os mortais e imortais”. E usando linguagem e argumentos que dela seriam, lhe diz: “Vou visitar Tétis e Oceano, que me criaram, para apaziguar suas infindáveis querelas, pois há muito tempo dormem separados e a ira apossou-se de seus corações”. E Afrodite lhe empresta o cinto onde estão bordados todos os encantos, fazendo-a conseguir seus intentos (Ilíada – Livro XIV).

O rosto feminino

No processo progressivo de afirmação humana, às deusas vão se substituindo as heroínas, ou as mulheres simplesmente… humanas, mas a citada tripartição vai permanecer. E, ao contrário da lembrada tripartição masculina, em que, embora haja propensão ao guerreiro, “nunca há distância entre o cetro e a espada” e “todo poder é tríplice, sacerdotal (ou mágico), jurídico e militar” (Dumézil), cada rosto feminino representa uma opção ou alternativa, com exclusão das demais: renúncia ao prazer e à sexualidade, e confinamento ao espaço doméstico na esposa e mãe; renúncia à maternidade ou à expressão da sexualidade na que luta por seus direitos, idéias e decisões. Hécuba, mulher de Príamo, rei de Tróia, o diz: “Vaga ao sabor da corrente, vaga segundo a fortuna; não ergas a proa de tua vida ao encontro da onda, vaga com a corrente do destino” (As Troianas, de Eurípedes). E Andrômaca, mulher de Heitor, a secunda: “Há casos em que, tendo ou não culpa, (…) apenas por sua presença, a mulher atrai má reputação não ficando em seu interior “(…); “eu calava meu desejo (…) e permanecia em casa. Dentro de meus aposentos eu não admitia às fúteis tagarelices das mulheres”; “uma boca silenciosa, um rosto sempre sereno, eis o que eu oferecia a meu marido”.

Ultrapassar os limites que cada opção impõe representa, pois, transgressão, no duplo sentido do termo: violação e denúncia, mas também ultrapassagem, transição. A transgressão registrará a recusa àquela identificação e referência, e/ou a superação dos limites impostos pela lei e pelos costumes. Pois transgredir será desafiar a lei do Pai, a lei masculina dominante, como o fazem as Danaides: “Ah, que não sejamos submetidas ao poder masculino”; ou como o coro das Tebaidas, que Etéocle, em nome de sua religião viril e cívica, condenará por ser “uma religião feminina” e “natural”; ou como o faz Antígona, que, “embora sendo mulher (…)” e sem armas, com suas mãos em concha escava o chão para jogar terra no corpo do irmão impedindo que seja devorado pelos cães e sua alma vague errante pela eternidade.

Quando a verdade que deriva do acordo tácito baseado na tradição passa ao senso da realidade impessoal na lei, também a transgressão passa a ter outro sentido: a insubmissão a uma norma inteligível é, antes de tudo, desobediência de um sujeito que reflete e sabe, que faz de sua autonomia um real “falar em seu próprio nome”: se Príamo desculpa Helena por não ter sido ela quem escolheu seguir Páris (Ilíada – Livro III), Antígona ou Electra afirmam que, ao seguir sua decisão, sabem que vão morrer ( Electra, de Sófocles/ Antígona, de Sófocles).

Por isso, a transgressão da lei, dos costumes e/ou a afirmação da própria liberdade, desejo ou sexualidade pagam sempre um preço, seja ele, a punição pela violação do interdito, seja o do sacrifício e da renúncia: a mulher lutadora ou guerreira, que sabe e afirma seus direitos, das Amazonas a Palas Atenéa, ou Antígona e Electra, renunciam a viver sua sexualidade feminina ou a ampliá-la na maternidade: Fedra vê-se punida com a perda de seus direitos e com a tragédia doméstica de que é causa, por ter-se deixado levar por Cipris (Afrodite) “que habita o ar, faz crescer a onda e de quem nasce tudo o que existe”, pois “semeia a vida e inspira o amor”; e não ter querido “resignar-se às leis que nos regem”, preferindo, “aos prazeres da virtude, um outro prazer” ( Fedra, de Eurípedes).

No mito de Ariadne encontramos uma surpreendente síntese desses aspectos: filha de Minos, rei de Creta, Ariadne se apaixona por Teseu, filho do rei Egeu trazido entre os 14 jovens a serem anualmente devorados pelo Minotauro, em cumprimento ao pesado tributo imposto a Atenas. Seguindo os impulsos de sua paixão, e afrontando a lei do pai e rei, Ariadne dá a Teseu o fio que lhe permitirá, após matar o Minotauro, escapar do labirinto (Cfr. o imaginário acima descrito: morte-vida / labirinto/ fio). E não só o faz como, levada pelo impulso amoroso e pelas promessas de casamento de Teseu, foge com ele. Pagará o preço: após a entrega amorosa é abandonada por Teseu em uma ilha (…) da qual só sairá ao casar-se com Dionísio ( A quem lembra a oposição ApoIo x Dionísio, magnificamente trabalhada por Nietszche, a opção fala por si…).

Esquecida já de seus condicionantes histórico-naturais, essa representação fragmentária do rosto feminino permanecerá em ouras lugares ou tempos: três são as Isoldas da célebre história de amor que vem desde o século XII; três são as faces das forças divinizadas da Natureza na etnografia afro-brasileira: Nanã, a mais velha mãe-d’água, mulher de Oxalá, mãe de todos os orixás protetora dos partos e que tem como instrumento uma pequena vassoura de palha; Yemanjá, a rainha do mar, para uns sereia, ou mulher-peixe, que simboliza a fecundidade da natureza e tem em seu abedé prateado uma sereia no centro-vaidosa e bela, tal como Oxum das águas doces, gosta de receber de presente espelhos, pentes, perfumes e sabonetes; Iansã, senhora dos ventos e das tempestades, irrequieta e guerreira, tem nas mãos uma espada de cobre ou latão, ou o eiru (rabo de boi com cabo de madeira) com que comanda os Eguns.

Poderá alguém objetar que essa fragmentação caracteriza o pensamento ocidental: “O homem da consciência reflexiva é um homem cortado em pedaços” (Gusdorf). O racional, que o fundamenta, é, etimologicamente, o que se fraciona; seu método recomenda “dividir as dificuldades em tantas partes forem necessárias para resolvê-las (Descartes); sua finalidade, a persuasão ou o controle, se justifica por sua necessidade de organização social e de expansão através do domínio da natureza – que irão se ampliar e aprofundar significativamente ao iniciar-se a era moderna. O movimento anti-natureza é essa fragmentação que permanece, negando a plenitude ontológica e, por intermediação da consciência moral e religiosa, reforçando as noções de pecado e culpa ( transgressão do interdito) que a obra humana deverá remediar.

Mas se a identidade se define como “o conjunto de caracteres próprios e exclusivos com os quais se podem diferenciar pessoas, animais, plantas e objetos uns dos outros”, “servindo a sua identificação e reconhecimento”, cabe perguntar de que modo seriam usadas tais representações da mulher?  Pois a representação inquestionada e introjetada anula a interrogação profunda entre um “eu que percebe” e um “eu que se expressa”, interrogação essencial à criação e à superação da atitude fatalista e submissa que faria uma personagem de Giraudoux dizer:” Meu destino é algo que foi separado de mim, não algo que me foi atribuído; algo que me foi tomado, que eu perdi e que continua, sem mim, a agir sobre mim” (A Máquina Infernal). Atitude que, mantida, impediria não só a (re)descoberta de uma possível e outra identidade, como de uma comunicação mais direta e espontânea com o mundo, com os outros, consigo mesmas.

Mas como adiante veremos, o mito de nossa época está alhures, está onde sua narrativa se transmite da boca ao ouvido, sem que qualquer fábula seja escrita, sem que qualquer enredo organize a ação. Mas “subsiste o desejo de abrir portas do mito. E é assim que se repete o primeiro de todos os passos. Como nossa época poderia recusá-lo?” (Eugennie Luccioni).

                    

                                                                               Maria Helena Kühner

O filme começa de forma estranha e inusitada: closes de um rosto feminino, takes longos e cenas em câmara lenta parecem sugerir ao espectador que atente aos detalhes, pois este filme diz mais do que parece dizer à primeira vista.

Abre-se a primeira parte: cenas de um casamento, com todos os seus rituais em relação aos noivos e convidados, uma visível preocupação em ostentar luxo e riqueza, e em atender aos  melhores padrões de consumo estabelecidos para o evento. Apenas a figura um tanto fora de contexto de uma mãe da noiva mal humorada e crítica, e um pai, dela separado, para quem todas as mulheres são Betty, dão um toque um tanto dissonante. Mas a noiva repete seguidamente: “Estou feliz, estou feliz, estou feliz”, com um sorriso permanente sublinhando a frase. Frase que a ambientação e ação parecem fundamentar, pois exibem todos os fatores de sucesso da sociedade atual: ela é bonita, rica, tem uma carreira bem sucedida no aplaudido mercado da publicidade, acaba de ser promovida ao cargo de diretora da arte por um chefe que a elogia e prestigia (mesmo dela exija decisões como a de promover ou destruir um jovem e ansioso novo funcionário contratado), e está se casando com jovem igualmente bonito, promissor e que a ama. Os breves momentos em que ela se afasta e detém um olhar perdido em planeta distante ou nos milhões de galáxias do universo, ou em que se afasta de todos e se fecha em um quarto para descansar, ou em que se deixa levar por súbito impulso de fazer sexo com o jovem funcionário cujo destino está em suas mãos, parecem apenas isso: detalhes ou momentos, mesmo, frutos talvez do cansaço e do rebuliço em torno. Embora já soe estranho ouvi-la dizer, em uma dessas pausas, que “um fio de linha cinzenta sobre sua perna pode paralisar seu andar”.

A estranheza vira surpresa quando, embora ainda e sempre repetindo “Eu sorrio, eu sorrio, eu sorrio”, ela se volta para o noivo e diz que “não vai conseguir” – encerrando assim o casamento apenas iniciado. E a seguir anuncia a seu poderoso chefe – ícone típico da sociedade ali exibida com todos os seus “valores”: “Sabe o que você significa para mim? Nada. Apenas isso: nada”.

 

Na segunda parte a ação se centra na ameaça próxima, de o planeta visto no céu, e que tem o significativo nome de Melancolia, colidir com a Terra e acabar com toda a vida nela existente – que, se começou com um Big Bang, ora pode acabar do mesmo modo.

Diante dessa ameaça de Morte – presença inescapável em toda vida humana – que fazer? Tentar fugir, em escapismo inútil? Deixar-se arrasar pela “melancolia” e sua depressão suicida? Ou, com elementos buscados na natureza, construir a frágil “caverna mágica” dos afetos e emoções, e nela, unindo as mãos em solidário gesto, buscar o frágil abrigo possível?

Meio ambiente e solidariedade – é o que ainda nos resta?

Num mundo em que a aceleração de um tempo cada mais veloz e voraz deixa pouco espaço à reflexão, à parada e pouso sempre necessários, o cineasta nos coloca diante da necessidade de rever os valores que nos são oferecidos e confrontá-los com uma pergunta fundamental,  e que, em momentos e tons diversos, tem sido recorrente na trajetória da humanidade no planeta Terra: no breve espaço de nossa vida humana,  o que dá sentido à vida? O que nela é realmente importante, não para o impossível sonho humano de eternidade, de escapar da morte, mas para dar sentido e significado a esse breve tempo que chamamos Vida?

Pergunta que ainda e sempre merecem nossa atenção e reflexão.

 

             

                                                                                 Maria Helena Kühner

Em Encruzilhadas: encontros e oposições nos cordéis de Manoel Pereira Sobrinho, a autora Fabiana Coelho demonstra reais qualidades de ensaísta, ou seja, de alguém que sabe apresentar um tema com um ponto de vista próprio e bem fundamentado.

Ao falar dos folhetos de cordel desse autor ela não se limita a dar a conhecer (o que já seria válido) esse cordelista que se mostra capaz não só de criar novas histórias com temas recorrentes na oralidade nordestina, como de recriar outras, de consagrados poetas mais antigos, com nova e rica fabulação. A leitura que Fabiana faz de sua obra abrange todos os sentidos da palavra ler: ela não só recolhe ou reúne folhetos, inclusive inéditos, pertencentes ao acervo da antiga editora Luzeiro do Norte, como escolhe ou elege os 38 que serão objeto de citação, outros 26 que serão analisados, e ainda 24 mais que serão consultados, para, com esse rico material, percorrer mitos, lendas e histórias que desde os tempos mitológicos compõem o imaginário, o simbólico e o real neles expresso, e neles assinalar o que há de vivido e estruturador de todo um caminhar humano. Um caminhar visto como um espaço em movimento, sempre in-produção e in-conclusão, encruzilhadas de caminhos incertos, provisórios, levando a separações e perdas, mas também abrindo a novos caminhos.

Quatro “encruzilhadas” marcam o trabalho, os encontros e separações que desenham identidades e diferenças: de gênero (homem/mulher), de classes sociais (rico/pobre), de nações (nativo/estrangeiro), de tempos (do passado ao futuro, e entre eles, os espaços ocultos da magia e do mistério).

Na primeira, as relações as relações entre o masculino e o feminino falam de presença ( o falo que aponta, a espada que corta) e ausência ( o útero que recebe, a caverna que abriga), de sua busca de encontro e união, de superar a falta e atingir a completude, do dinamismo e instabilidade das trocas gerando paixão, casamento, união, separação, luta e/ou necessidade de véus, de máscaras, de disfarces ( guerreiras que se disfarçam em soldados, jardineiros que se travestem de mulheres), de adotar outro sexo, outro nome, outro lugar, vigiados ou pressionados pela figura onipresente do Pai – instaurador do nome, do limite, da lei, definindo espaços e papéis, e, com eles, identidades que, para superar ou modificar, obrigam os transgressores a passar por lutas, a enfrentar desafios, ou até a entrar em mundos encantados em cujas sombras e abismos feiticeiras e magos manipulam o tempo e  a linguagem. Mas Pai, rei ou senhor que tem também contra ele o tempo, o destino e…  o poeta, que subverte as possibilidades dando vida ao sonho, ao desejo e à emoção do encontro e união buscados.

Na segunda encruzilhada constrói-se um espaço cujos cortes e interdições separam a camponesa e o príncipe, o mendigo e a filha do rei. Espaço que, ao ser mostrado por alguém que está fora de seu lugar (o mendigo, o viajante disfarçado, um anti-herói) mais que personificar o Outro, desloca os limites e fronteiras entre o centro hegemônico e a margem que o isola, rompe a estrutura de classes e instaura um espaço de contradições provocando o deslocamento dos centros de poder e hegemonia, criando um ponto heterotópico e múltiplo de resistência. Resistência com armas próprias, que incorporam a malícia, a astúcia, as artimanhas, o arrancar de máscaras e o desvelamento dos discursos, com uma visão crítico-cômica que exibe o grotesco e ridículo dos que se arvoram em donos absolutos do poder e da verdade.  E abre, assim, um espaço de construção simbólica de novos significados, que, mais que falar em tensões ou das relações de classes como espaço de luta e oposição, exibe as falhas do sistema em que se alicerça a realidade e tem como armas a repressão, a coerção e o interdito de suas leis, expondo necessidades e desejos sempre negados pelo real construído e só possíveis (ainda) no espaço indefinido e contraditório dos sonhos e da poesia – nem por isso menos catártico e inspirador.

Na terceira encruzilhada, o estrangeiro imigrante, o eterno viajante, o personagem que muda de tempo e lugar criando ou revelando novos caminhos, falando de identidades nacionais ou de desterritorialização lembra que o isolamento (ilha ou subterrâneo) é prisão. Que o contato com o Outro, a abertura ao estranho e diferente, é requisito primeiro para o encontro e união, para o final feliz sempre sonhado e buscado. Que em cada fronteira há uma ponte ou passagem. Para cada prisão uma possível libertação. Que toda lei pode encontrar um possível transgressor. Que para cada estrangeiro há uma terra à espera. Que toda viagem pode ser busca/encontro de uma terra prometida. Pois os espaços transpostos ou cruzados no encontro e na diferenciação podem também gerar novas identidades ou novas comunidades.  

Na quarta encruzilhada, o cruzar dos tempos, que ora desenha o tempo linear de uma reta ou destino pré-traçados que tem um ponto ou meta final, ora a roda da fortuna em seu eterno girar trazendo em seu movimento a mudança e o imprevisível, a permanente relação de vida e morte. E, entre eles, mundos ocultos em que habitam feiticeiras, adivinhos e magos. Fazendo ver que incertezas e contradições são presença inescapável a cada novo passo. E que o tempo é paradoxal: vida e morte, movimento e repouso, eternidade e porvir.

O exame minucioso, atento e sensível dos folhetos, as citações pontuando cada aspecto mostrado não cabem em uma breve resenha que pode apenas apontar a validade da obra e fazer entender por que ganhou o Prêmio Jordão Emerenciano de Ensaio do Conselho Municipal de Cultura de Recife. Os que se interessarem por sua enriquecedora leitura podem buscá-la na Livraria Cultura (www.livrariacultura.com.br) ou em contato com a autora (bianasl@bol.com.br )– por ela autorizado.