Faltam em nossa literatura dramática e nas encenações em cartaz em nossos palcos peças que tenham por tema e personagens a velhice e os idosos, embora o público de terceira idade seja hoje reconhecidamente predominante em nossos teatros.
Daí essa peça, tratando o tema com um enfoque amplo, que vai dos conceitos e sugestões de Simone de Beauvoir em seu famoso livro La Vieillesse ao universo da cultura popular, com sua visão de mundo enraizada em um cotidiano feito de resistência e persistência, de enfrentamento das adversidades e mudanças da vida com um constante apelo à experiência e à razão, ao sentimento e emoção, ao riso e ao humor crítico. A Autora é também a tradutora do livro “Ganhei mais vida!” (Une Vie en plus) de Dominique Signoret (Ed. Bertrand Brasil), que enfoca por três ângulos (o biológico, o psíquico e o social) os 20 anos a mais que a Ciência já obteve para a média de vida atual em todo o mundo.
A encenação prevista terá elenco formado por um Ator e uma Atriz com longa experiência de palco, e preocupados sempre em ver e mostrar o mundo e a vida sob pontos de vista diferentes, visando à sociedade mais aberta e solidária com que todos sonhamos.
E o trabalho, embora possa interessar a platéias de todas as idades e de todas as camadas sociais, é especialmente dedicado a essa faixa etária cujo percentual cresceu tanto em nossa população, como em todas as partes do mundo.
COMO DEUS QUER OU COMO O DIABO GOSTA ?
Um quarto pobre, só com uma cama de casal ou colchão no chão, uma cômoda ou cabideiro. Telão ao fundo, onde serão feitas projeções, enriquecendo a cena. As projeções serão sempre citações de filmes de Chaplin, de Fellini, de Bergman que têm por tema o circo, recortados de modo a ilustrar as situações lembradas.
Ele sentado, tranquilo, lendo jornal. Ela entra, furiosa:
Ela – Ah! Isso precisa de uma resposta! Não pode ficar assim! Não vai ficar assim!
Ele – Que foi que houve?
Ela – De novo a mesma coisa! É humilhante! Machuca! Magoa! (desorientada) Eu tenho que… eu tenho que……Eu vou achar uma resposta!-
Ele – Calma, mulher… O que foi que aconteceu? Me diz!
Ela (sem responder) – O pior é que… é verdade. Mas… eu não sei…eu não acho que… eu não…
Ele – (segurando-a pelos ombros) Quer me dizer o que “é verdade”, mas precisa de “uma resposta”?
Ela – (depois de uma pausa, com dificuldade) – É minha filha… nossa filha… Me viu alisando minha roupa de bailarina…parou e disse: “Por que você não joga essa porcaria fora? Fica só ocupando espaço no armário!” E quando eu disse: “Eu guardo, que talvez ela ainda possa servir para…” Nem esperou eu acabar de falar e gritou: “Servir pra quê, mãe! Pára de inventar coisa! Pára com essa mania de se meter onde não é chamada! Você tem que entender que está velha e velho tem mais é que ficar sossegado no seu canto! Velho serve é pra tomar conta de neto quando é preciso! E só!”
Ele – E você ainda liga pras besteiras que ela diz? Ela é uma egoísta, só pensa no que serve pra ela!
Ela – Por qualquer coisinha ela vem lembrar que eu estou velha… e que estou demais aqui…O pior é que eu estou velha mesmo… Eu me sinto velha… Mas quando pego essa roupa… eu fico lembrando…Era tão bonito…( Encosta a roupa de bailarina sobre o próprio corpo, a luz vai mudando para um azulado de sonho ou devaneio.) E não foi fácil… A vida no circo era um bocado dura… Não foi nada fácil virar equilibrista… Tive que treinar muito… (No telão, imagens do que ela vai descrevendo: uma equilibrista, o público…) Aquele fio lá no alto… eu com a sombrinha, caminhando…um pé…outro pé… Não podia cair! E lá de cima eu via o público, parado, todos de olhos grudados em mim, sem nem respirar… E eu vinha vindo… um pé… outro pé… Parecia que o mundo ficava pequeno e que lá de cima eu governava tudo, eu que mandava no olhar, no respirar, ou que mandava todo mundo ficar ali, parado, imóvel… Quando eu chegava no final, cumprimentava, baixando a sombrinha… e o circo quase vinha abaixo de tanta palma!
Ele – Você era mesmo a estrela do circo! Por isso que eu me apaixonei por você…
Luz retorna à de antes.
Ela – A vida no circo era dura… Mas eu era feliz… Agora… (Num rompante súbito) Vam’bora daqui! Eu não quero mais morar com eles, não quero depender de filho… É muito sofrido!
Ele – E viver de que, mulher? Nossa aposentadoria não…
Ela – (corta) Viver do que der… como puder! A gente não precisa de muito, sabe viver com o pouco que tem… Até fome já passamos, não ia ser novidade…
Ele – Só se eu voltasse ser camelô. Que camelô pode ter qualquer idade.
Ela – Verdade. Você foi mesmo camelô quando novo, não foi?
Ele – E era bom! Vendia tudo!
Ela – O que é que você vendia? Relógio de pulso? Carteira? Pente e baton?
Ele – Não! Vendia ventilador, desentupidor, consolo…
Ela – Eu, hein! Nunca vi camelô vendendo ventilador, desentupidor… e muito menos consolo!
Ele – É que você nunca precisou do que eu vendia. Mas quando eu anunciava: (tom) Ventilador de calcinha pra xereca afogueada! Desentupidor de tripa pra intestino com preguiça! Consolo pra viúva ainda cheia de memória! Pílula japonesa pra levantar o… (gesto) que tá caído! Prótese de porcelana pra homem sem serventia!…
Você precisava ver: chovia freguês!
Ela – Você só vendia coisas desse tipo, coisas lá pras… partes baixas?
Ele – É o que tem mais saída! Você nem imagina!
Ela – Nossa! Não sabia que tinha tanto homem brocha por aí… nem tanta mulher a perigo!
Ele – Mas eu não ficava só lá nos países baixos, não. Também tinha pomada pra testa…
Ela – Pomada pra testa…?
Ele – É. Pra aliviar dor de corno.
Ela – E quem é que tem coragem de sair comprando isso assim, à vista dos outros, passando atestado de…
Ele – Ninguém compra pra si, mas adora levar pro vizinho, pro colega de trabalho, só de sacanagem… Não conhece aquele cordel que diz:
Se cabeça fosse canteiro
e chifre fosse jasmim
nem precisava regar:
muita gente por aqui
tinha virado jardim!
Ela (rindo) – Você devia ser um bom camelô mesmo. É bom de papo. Convence… E continua um palhaço também!…(No telão, close do rosto de um palhaço) Eu chego aqui fumegando de raiva… e num instante já tá me fazendo rir!
Ele – De palhaço eu fiz a alegria de muita gente! E tudo que gente que nem nós, gente que tem alma de artista quer é isso: é dar alegria pros outros!
Ela – Alma de artista… (sai imagem da tela) Eu fui… Fui bailarina, equilibrista, atriz do teatro… Cada drama de fazer todo mundo chorar… E agora, o que é que eu sou? Sou essa velha sem serventia pra nada. Uma velha que a própria filha acha que é um traste que tem mais é que botar no canto pra não atrapalhar quem anda!
Ele – Pára com esse negócio de velhice! Seu problema não é a idade, é se sentir velha!
Ela – Mas a idade chega mesmo… E com ela a saúde fica pior, a memória começa a falhar…
Ele – Hoje a Ciência tem remédios e caminhos que já deram 20 anos mais de vida pra todo mundo! E dizem que daqui mais um pouco fazer 100 anos não vai ser surpresa nem novidade!
Ela – Ah, falar é fácil…
Ele – Escuta uma coisa: se você saísse andando pela rua e em vez de olhar pra frente ficasse olhando só pra trás, o que ia acontecer?
Ela – Sei lá… Dava com a cara num poste… ou enfiava o pé num buraco e caía…
Ele – Então pára com esse eu fui, eu fiz, só olhando pra trás, pro passado! Sabe qual era o tempo de vida na época dos romanos? Eu li outro dia: 20 anos!
Ela – Só 20 anos…?!…Tão pouca vida?
Ele – E até o século 17 – só (contando nos dedos à frente dela) só 1,2,3 séculos antes de nós, a média de vida era de 27 anos!
Ela – Que nem esses artistas do rock hoje: morre tudo drogado aos 27 anos…
Ele – Por essa conta nós já vivemos 2 vezes, já vivemos duas vidas! Então você vê que isso de se agarrar na idade é besteira: cada idade é o que você faz dela. Os homens que mandavam no mundo no século passado – Mao-Tse-tung, Stalin, Churchill, Salazar, De Gaulle, Ho Chi Min e não sei quantos mais todos tinham mais de 80 anos!
Ela – Mais de 80?!…É mesmo? Não sabia… Ah, mas você não pode negar que com a velhice a gente vai perdendo muita coisa: perde o ânimo, o entusiasmo, perde a força pra meter a cara e enfrentar o que der e vier!
Ele – E ganha experiência, ganha sabedoria, ganha mais serenidade pra não fazer as coisas sem pensar, pra não sair mergulhando de cabeça em água rasa!
Ela – Mas eu sinto falta. Sinto falta de minha disposição de encarar os desafios, sinto falta de muitas coisas… Até da aparência jovem e bonita que eu tinha.
Passagem rápida da imagem da bailarina no telão marca sua lembrança.
Ele – Sentir falta faz parte de todo vivente em qualquer idade e condição. O cachorro vira-lata na rua sente falta de um dono que lhe dê teto e comida. O passarinho na gaiola tem abrigo e alpiste, mas sente falta da liberdade. Também não existe ser humano que não sinta ou não tenha sentido falta de alguma coisa. O pobre sente falta de uma sobrevivência garantida e segura. O rico sente falta de amizade sincera porque a maioria só vê na cara dele um cifrão a explorar. (Empolgando-se cada vez mais) A falta existe em todo ser vivo. Mas é a falta que faz nascer o desejo. O desejo que diz de que você sente falta, de que você precisa, desejo que mostra o que é mais importante na sua vida! É da falta que nasce o desejo de preencher o que tá te faltando! Então é da falta que surge tudo que existe, tudo que se criou no mundo!
Ela – Eita! Falou bonito! Mais um discurso desses, e você vira deputado.
Ele – Epa! Tá me elogiando ou tá me xingando?
Ela – Ué, chamar de deputado é xingamento?
Ele – Pode ser: que de de-puta pra da-puta é uma letrinha, é só um passo. Que muitos por aí já ’tão dando…
Ela – Isso é verdade. Mas cuidado, que se alguém te ouve…
Ele – Eu digo que é brincadeira de palhaço. Se bem que em todos os tempos foram sempre os palhaços, os bufões, os bobos da corte os que, brincando, diziam toda verdade, até aos reis.
Passagem rápida de cena com palhaços no telão ilustra.
Ele – Mas se estamos falando em dar um passo – que não precisa ser igual ao deles – vamos ao nosso: independência! Não é esse o seu desejo, não é isso que você quer? Que nós queremos! Então… tá decidido! Bola pra frente!
Ela (susto) – Espera !… Tem que ver… Procurar primeiro pra onde ir…
Ele – Isso se acha fácil. No circo a gente ia de um lado pro outro, dormia em vagão trem, em trailer, em pensão, acampando na estrada, onde dava!
Ela – Eu sei, mas agora…
Ele – Você continua sendo uma equilibrista! E o fio da Vida é mais firme e mais forte que aquele em que você andava!
Ela (de lado) – Mas não tem rede em baixo se cair…
Ele (sem ouvi-la) – Vamos arrumar nossas coisas… que são tão poucas que isso pode ser feito rápido, rápido!
Sai.
Ela (sozinha, cada vez mais ansiosa) – Independência… como? A História mesma diz: Independência … ou morte!
Por ver: no telão o famoso quadro de Pedro Américo, se acaso.
Independência ou morte. Ou morte… É um risco… Aqui não é bom, mas é seguro. (tentando convencer a si mesma) Minha filha… falou sem pensar. É o jeito dela, sair falando assim… Mas eu sei que ela não me deseja mal. Vai ver ela acha que… que é assim que eu vou ter paz, tranquilidade… depois de tudo que eu já passei na vida… É isso… Vai ver é isso que ela pensou…
Ele volta com uma grande mala e põe diante dela.
Ela (estranhando) – Que… qu’é isso?
Ele – Meu órgão. Esqueceu do meu órgão?
Ela – (confusa) Seu… seu órgão? (olhando-o de cima a baixo) Mas… mas seu órgão não é tão grande precise carregar em mala. Eu conheço ele. E é bem… (gesto de “pequenininho” com a mão)
Ele – (ofendido) Não é desse órgão que eu tô falando. É do órgão que se toca – quer dizer, o meu também se toca, mas… esse aqui é o que se toca música!
Ela – Ah! O acordeão! Tava esquecendo! Você falou “meu órgão”, eu pensei…
Ele – (corta, seco) Não precisa dizer o que pensou. E suas observações sobre ele também não me interessam.
Ela – Sei. Olha, desculpa. Eu só queria saber… pra onde é que nós vamos. Que quando o circo foi vendido a gente veio pra cá porque não tinha pra onde ir!
Ele – Tem uma pensão aqui perto, muito boa. O quarto é bem barato.
Ela – Um quarto não é uma casa.
Ele – E o que é que nós temos aqui? Um quarto na casa deles. Que cobram o que nós comemos. E ainda nos jogam na cara que estamos morando de favor.
Ela – E como é que nós vamos comer? Que no quarto não se cozinha. E com comida a pensão é mais cara.
Ele – Nós somos urubus, esqueceu?
Ela – Nós… urubus? Eu sei que você é Flamengo…
Ele –– Incondicional!
Ela -… mas daí a ser urubu eu não entendi a relação.
Ele – Você não conhece a história do urubu?
Ela – Não.
Ele – Já que você faz essa cara de “me conte” eu vou contar.
Ela senta na beira da cama e ele conta pra ela e pra platéia.
Luz dá o clima. No telão, ilustrando, close de um urubu, asas abertas, em pleno vôo.
Ele – Era uma vez um tal de Dom Urubu, que todos chamavam de Rei dos Ares. Um dia, quando ele ia no mais sereno do vôo, baixou de repente uma tempestade daquelas! Era tanta chuva que parecia que o mundo vinha abaixo! O urubu foi avoando que nem um corisco e pousou no telhado de uma casa velha. E ficou de lá assuntando pra ver como é que os outros bichos iam se arranjar, se ele, que era o Rei dos Ares, não estava tendo onde se esconder. Aí viu um bando de pombas fugindo, (no telão, pombos em revoada) que logo se meteram no pombal. E o Urubu pensou: “Hum… É ali que elas moram. Deixa vir o Sol que eu também vou fazer minha casa”. Depois passou uma carreira de andorinhas (no telão, andorinhas em carreira, voando) que ele seguiu com a vista e foram se enfiar na beirada do telhado. O urubu falou: “Hum, ali que elas se abrigam, ali que é a casa delas. Eu também vou fazer uma casa pra mim”. Aí passaram umas cambaxirras, se enfiaram num buraco do muro e ficaram lá, bem quietinhas (no telão, cambaxirras aninhadas, olhando). O Urubu só olhando: “Ah, elas têm essa casa. É, acho que eu também tenho que fazer uma casa pra mim”. E a chuva caindo forte, e o vento assobiando, danado de brabo. Os trabalhadores vieram correndo do campo e se meteram na casa onde o Urubu estava em cima do telhado, mais molhado que um pinto pelado e jurando que, quando o Sol saísse, ele ia fazer sua casa.
Aí veio o Sol. Ele sacudiu as asas, voou pra esquentar o corpo e, quando se viu bem enxuto, foi pelos ares rindo dos outros pássaros que não conseguiam chegar no alto onde ele ia. Uma cambaxirra que tinha escutado ele prometer que ia ter casa perguntou: “Dom Urubu, quando é que o senhor vai começar sua casa?” Ele deu uma risada e respondeu: “Quem tem asa para que precisa de casa?”…
Reversão de luz. Imagem some da tela.
Ela – Quem tem asa não precisa de casa. Mas é por isso que o urubu até hoje não tem casa. E eu… se há uma coisa que no vaivém da vida eu sempre desejei foi um dia ter casa. A minha casa.
Ele – A gente chega lá.
Ela – Mas saindo daqui já… E assim… Sei não… Será que não era melhor…
Ele (num repente) – Me faz um favor? Deita aí na cama.
Ela – Hein?…Deitar? Pra que?
Ele – Tô com uma dúvida que eu quero esclarecer.
Ela – Uma dúvida? Que dúvida?
Ele – Você vai ver.
Ela ergue os ombros, duvidosa, e se deita.
Ele – Faz de conta que uma noite você tá aí, bem dormindo, e cai uma tempestade. Chuva que não acaba mais!
Ela – Outra tempestade? Eta dia chuvoso!
Ele (sem ligar pra interrupção) – E aí você descobre que tem uma goteira no teto. E que começou a pingar na sua barriga: (faz os pingos) tum…tum…tum…A pingar seguido, sem parar…Tum…tum…tum…
Ela – Tá… Tô sentindo os pingos. E daí?
Ele – Aí você não consegue mais dormir. E então você levanta, pega uma bacia (pode, se acaso, pegar uma), se deita de novo, põe a bacia em cima da barriga pra aparar a goteira. E a água na bacia vai subindo, vai subindo…
Ela – Ô, tá maluco! Eu não sou burra, não! Se a água vai subindo desse jeito acaba enchendo a bacia, derramando pela cama, me encharcando toda…
Ele – Hum… Como você não é burra, o que é que você faz?
Ela – Eu puxo a cama, mudo a cama de lugar, e mudo junto. É só mudar de lugar e pronto! A bacia fica lá, enchendo sozinha…
Ele – Falou e disse!
Ela (surpresa) – Hein?…Que foi que eu disse?
Ele – A palavra-chave: mudar. A solução do problema: mudar!
Ela – Mudar o que? Mudar a cama de lugar?
Ele – Não. Mudar o que for preciso. A vida toda, mesmo sem ter tempestade, vão pingando em cima da gente cobranças, invejas, ódios, mágoas, ressentimentos, lembranças ruins… A gente pensa que é só uma goteira, que são só uns pinguinhos que a bacia do coração pode aparar… E a gente vai carregando, carregando, e de gota em gota essa água vai subindo, subindo, até que, sem a gente se dar conta, vai afogando tudo em volta e estragando tudo de bom junto.
Ela (Pensativa. Pausa) – Hum… Então…tem que jogar essa…essa “água” ruim toda fora? Ah, mas isso fica muito metido dentro da gente. Tem jeito, não.
Ele – Como não? É só aprender com a Natureza. Como é que a Natureza ensinou nosso corpo a fazer? A gente come, bota pra dentro o alimento. Aí o corpo começa a agir: separa o que vai nutrir, o que vai fazer ele crescer, ter saúde, e o resto… o que não presta, é bosta, excremento, merda, que o corpo bota pra fora!
Ela – Mas você não conhece o ditado que fala do perigo de jogar fora a criança com a água do banho?
Ele – Pra isso a gente pensa, reflete, compara: é isso que a idade e a experiência ensinam a fazer. Ensinam a ver o que é preciso mudar. Ensinam a não ter medo de mudança. A não ir pela cabeça dessa raça de mente acanhada que em tudo vê perigo e ameaça. Você mesma sempre foi assim. E já fez isso muitas vezes.
Na tela, imagem dela tirando lenço da cabeça e soltando os cabelos ao vento.
Ela “se vê”, enquanto ele continua.
Ele – E tem que fazer tudo na vida antes de morrer. Que depois de morrer, já viu, não faz mais nada.
Ela – Mudança… Deixando tudo pra trás?
Ele – Não! Deixar o que não importa. Que o mais importante é o que vai dentro da gente. Aliás, nisso nós dois temos uma vantagem: na nossa vida aprendemos a não ser apegados às coisas, já sabemos que roupas, móveis, objetos, essa tralha toda a que muita gente se agarra, não são a coisa mais importante, que não é isso que faz a vida. E isso facilita pra nós: é menos carga pra carregar.
Ela – Lá isso é verdade… Nem desses móveis nós precisamos: o quarto da pensão vem com móveis, não vem?
Ele – Com certeza.
Ela pára, ainda meio hesitante, olhando em torno.
Ele – Olha, eu sei que toda mudança é difícil, que às vezes as dúvidas, as perguntas são muitas, que a gente fica inseguro, parece que a vida toda tá balançando por um fio, na corda bamba. Mas depois que se consegue… você sabe isso melhor que ninguém, a gente vê que valeu a pena, se sente novo, renovado, sente que enviveceu! Você vai ver!
Ela – Ah, sabe que mais? Tá bem! Vamos nessa! E seja o que Deus quiser!
Ele – Viva! Vamos! ( vem pra ela,cantando) E se alguém perguntar por mim
Diz eu fui por aí
Com meu acordeão debaixo do braço…
Lembra dessa música? Quando eu cantei ela no programa de calouros do Ari
Barroso fui aplaudido à beça!
Ela – Hum… É o que você conta… Mas com essa voz acho que levou foi gongo!
Ele – Que o quê! Queriam até me chamar pra ser cantor da rádio!
Ela – Sei… Isso é verdade?
Ele – Se não é, podia ser… (volta a cantar) Em qualquer esquina eu paro
Em qualquer botequim eu bebo
E se houver motivo
É mais um samba que eu faço…
(ela entra e cantam juntos, um olhando para o outro )
Se quiserem saber se eu volto
Diga que sim
Mas só depois que a saudade
se afastar de mim (bis)…
Riem, se abraçam.
Luz desce à penumbra para a “mudança.” Para o público não pensar que acabou fica o vulto dos dois virando a colcha da cama, trocando a posição das peças pra fazer um novo cenário. Reabre em seguida, com ela deitada na cama e ele zanzando de um lado pro outro. Ela se reergue a meio na cama e o observa sem ele perceber, até que:
Ela – Por que é que tá fazendo quilometragem de um lado pro outro? Perdeu o sono?
Ele – Não. Achei uma idéia. E tô aqui conversando com ela.
Ela – Uma idéia? Qual é a idéia?
Ele – Inda é segredo.
Ela – Segredo…? Pra mim? (Ofendida) Ah, muito obrigada!
Ele – Vamos ver se consigo te explicar. É o seguinte: a gente tava cansado da lida, da luta – que a gente já passou o diabo, nossa vida nunca foi moleza.
Ela – Isso não é novidade pra mim.
Ele – Aí você decidiu ir morar com a filha. Isso não chegou a ser um erro. Mas em seguida a gente cometeu um erro brabo!
Ela – Um erro brabo? O que foi?
Ele – A gente parou. A gente se isolou. A gente se fechou pro mundo.
Ela – Mas o cansaço, a idade, faz a gente parar mesmo…
Ele – Não bota a culpa na idade! Todo mundo quer ser valorizado, ser querido, ser amado pelos outros – que o amor é a semente da vida. Amar e se sentir amado, sem essa semente nada cresce.
Ela – Eu sei.
Ele – Mas se você se esquece dos outros, se esquece do mundo, vai também ficando esquecido, largado, sozinho. Que quem vai lhe dar valor se você mesmo não se valoriza, se apaga, se esquece a vida, o mundo, os outros? O livro da vida se escreve é na união, pensando junto, agindo junto.
Ela – Mas o que é que a gente pode fazer, na nossa idade, e com pouco dinheiro?
Ele – Dinheiro não é tudo! A gente tá numa sociedade besta, que só pensa em dinheiro: abre um jornal, liga o rádio ou a TV e lá vem notícia de que a economia tá assim, tá assado, que os bancos, que os investimentos, a bolsa de valores… Parece que é só o que conta. Mas essa dinheirama toda rolando não impediu a desigualdade, a miséria, a fome, as desgraças, não impediu que só uns poucos metessem o pé em cima de tudo e pegasse tudo só pra eles! E a maior parte ficasse excluído, ficasse de fora!
Ela – Então o que é que gente que nem nós pode fazer?
Ele – Lembra o que a gente tava conversando outro dia? Que tudo começa no desejo, no sonho. A gente olha em volta, vê onde tem uma brecha, olha o que outros fizeram, consulta a própria experiência pra saber do que é capaz de fazer e… vai em frente!
Ela – Lembra o tempo em que eu fui vidente? Deu muito certo… As pessoas adoravam… E o que eu fazia era isso mesmo… Botava aquele turbante… a bola de cristal na frente…
Luz muda. No telão, foco na imagem descrita dando o clima da cena. Ela
continua de cá, envolvida em sua lembrança:
Ela – E os clientes vinham chegando… A garota que queria saber se ia conquistar o cara que ela tava de olho… O cara que ‘tava buscando emprego… O outro que ‘tava esperando uma promoção no trabalho… Eu ia perguntando, perguntando, cada um que falava eu ouvia qual era o seu sonho, o seu desejo… e qual era o seu medo, a sua dúvida…Eu ouvia, ouvia, e ia pensando junto, sem eles sentir… Que nem um que chegou perguntando se devia casar ou não. Que ele achava bom o casamento, gostava da menina, mas tinha medo de ficar preso, que uma mulher só pro resto da vida era como passar com dieta de arroz e feijão no almoço e no jantar a vida toda, ele ia acabar enjoando… Aí eu perguntei pra ele: entre o bom e o melhor, qual ele escolhia? É claro que ele escolheu o melhor. E eu disse: então, pra você, casamento é bom, nas não casar é melhor. (sorrindo) Na realidade não era bola de cristal nenhuma que dizia nada. Muitas vezes era só minha intuição. Mas eu garantia que, se eles se empenhassem, o desejo deles ia dar certo, que eu via na bola que a sorte tava a favor! E isso criava neles uma alma nova, uma fé, uma confiança em si mesmo, uma certeza que empurrava eles pra frente e fazia chegar onde queriam! Muitos vinham me agradecer depois…
Luz volta à real.
Ele – Mais vale a fé que o pau da barca, diz o povo. Se a gente puxa o remo com gana, com fé e com força, o barco vai adiante!
Ela (num repente) – E você, não quer ser meu cliente? Quem sabe eu vejo seu futuro.
No telão (fade in) voltando a imagem da vidente. Luz dá o clima.
Ela ( pra ele, pose, tom) – Pode começar a perguntar: o que o senhor quer saber?
Ele (entrando no jogo) – Eu estou numa encruzilhada, num momento de decisão, que pode mudar o rumo de minha vida…
Ela – O senhor está mesmo num momento difícil. Acaba de passar por uma separação…
Ele – Foi. De minha filha. Doeu, mas acho que ela já superou.
Ela – Com certeza. Tô vendo aqui que ela até ficou aliviada. E agora o snr. quer entrar num empreendimento novo. E precisa saber se vai ter sucesso.
Ele – Sucesso é coisa que ninguém pode garantir. Todo empreendimento novo é um desafio.
Ela – E… o snr. tem recursos pra enfrentar esse desafio? O que é que o snr. tá desejando?
Ele – Quero algo que seja uma fonte de interesse, uma forma de me botar em contato com o mundo, com as outras pessoas. Uma atividade que seja um programa de vida.
Ela – Uau!…Não é pouco! Uma fonte de interesse, contato com as pessoas, um programa de vida! Que é que o snr. tá pretendendo? Fazer uma viagem? Procurar alguém? Montar um negócio? Descobrir um tesouro? E como espera conseguir o que quer?
Ele – Eu tenho esperança, mas não fico esperando. Não fico parado. Vou à luta.
Ela – Vai à luta pra que?
Ele – Sua bola de cristal não diz? ( Imagem sumindo em fade out.) Você é que está querendo saber, não é? Então por que não faz uma “consulta” pra você mesma? Pra ganhar aquela “alma nova”, aquela fé e confiança em si que agora ‘tão te faltando?
Ela (Pausa)- Talvez. Acho que ‘tão me faltando, sim. Hoje mesmo eu tive um sonho ruim, um pesadelo daqueles: sonhei… com a Velha da Foice. Com a Morte.
Talvez passagem rápida da figura no telão.
Ele – Sonhar com a morte é sinal de vida. É o que dizem os livros que interpretam os sonhos.
Ela – Sonhar com morte é vida? Maluquice. Não tem a menor lógica.
Ele – Lógica é uma coisa que inventaram pra convencer das idéias que querem botar na cabeça da gente. A lógica também engana. Tem uns que, quando querem, juntam as idéias de um jeito que torce tudo, só pra enganar.
Ela – Tá é doido! Uma idéia liga com outra, que liga com outra, tudo bem encadeado. E a gente tem que se guiar é pela cabeça, pela razão.
Ele – Às vezes o coração sabe mais que a razão. E isso de uma idéia puxar outra… não viu o que aconteceu com aquele cara, que por causa da lógica levou um tiro no pé?
Ela – Um tiro no pé? Por causa da lógica? Quem… do que você ‘tá falando?
Ele – Você mesma que me contou. Aquele cara do cabaré da Rio-Bahia, onde você foi dançarina de tango…
Imagem de uma dançando tango no telão.
Ela – Ah, na época que a gente ficou separado. É uma época que eu não gosto de lembrar…
Ele – O dono do cabaré era o tal Paco Garcéz, que se dizia argentino de Buenos Aires e quando eu fui lá, morto de saudade, te procurar de novo…
Ela – (emenda rindo)… descobriu que ele era do Piauí e se chamava Raimundo Silva.
Ele – Mas ele tinha mania de fingir sotaque e falar como gringo. Pois foi com ele aquele caso do fazendeiro do interior que um dia chegou no cabaré e ele, pra ser gentil e agradar, foi logo saudando: “Amico mio!” E o sujeito foi prum canto e ficou lá, matutando: por que ele me chamou de mico? Mico é macaco. E o que ele quer dizer com esse mio? Quem mia é gato, gato come rato, rato come queijo, queijo é feito de leite, leite saí da teta da vaca, vaca tem chifre… então esse safado tá me chamando de macaco chifrudo! E pum! deu um tiro no pé dele, que quase deixa ele aleijado.
Ela – (ri, mas logo à tom anterior) Ah, nós ‘tamos falando de vida e morte, de coisas das mais sérias e você vem lembrar esse “causo” maluco!
Ele – Maluco por que? Tudo dentro da maior lógica…
Ela – Tá bom… Você não deixa nunca de ser um palhaço mesmo, de fazer gozação de tudo…
Pausa em silêncio.
Ele – Então, falando sério: você sonhou com o Zé Maria, viu a cara da morte de perto e está impressionada. Mas se a gente fica só pensando na morte aí é que ela chega mais depressa mesmo. Você lembrou de quando era vidente… e esquece o caso daquele sujeito que foi pedir pra um vidente adivinhar o dia da morte dele.
Ela – O dia da morte? Essa consulta nunca me fizeram.
Ele – Aí o adivinho, sem saber o que dizer, respondeu: “Olha, você há de morrer no dia em que vier montado em sua mula na estrada e a mula der três zurros”.
Ela – Três zurros…? Mas o que isso tem a ver com a morte?
Ele – Não sei. Só sei que toda vez que montava na mula ele ia bem atento. Um dia, numa volta da estrada, apareceu um caminhão, a mula se assustou e deu três zurros. O cara se jogou da sela pro chão gritando: Morri! E ficou ali, duro, crente que ‘tava morto. Aí uns trabalhadores que passavam deram com ele estendido e achando que ’tava morto, botaram numa rede pra levar pra casa dele. Chegando numa encruzilhada, um dos que levavam a rede falou: acho que o caminho mais curto pra casa do morto é o da direita. O outro discordou e começaram a discutir. Aí o defunto levantou e gritou: “No tempo que eu era vivo o caminho mais curto era o da esquerda!” Pra quê! Os outros se apavoraram, jogaram a rede com o “defunto” no chão e saíram na disparada. Só que, com a queda, ele bateu com a cabeça numa pedra… e morreu de verdade.
Ela – Ah, então o adivinho acertou! Tá vendo?…Qual… Você e seus “causos”… Vaidade de não deixar nada sem explicação… Mas agora eu que te pego… Você não quer que eu fale de morte, né? Então me diz: quem fez a vida?
Ele – Foi Deus, que é o Criador.
Ela – E quem fez Deus?
Ele ( sem hesitar) – Ora, foi o pai dele.
Ela – Hah! Me explica isso: então há dois Deuses?
Ele – Não! Quem é o pai do Dr. Paulo, o médico? Não é “Seu” Matias, o mecânico?
Ela – Não entendi… O que isso tem a ver?
Ele – Tem tudo a ver. O filho é médico, o pai é mecânico. Então o pai de Deus, pode não ser Deus, ter outro ofício.
Ela – Você… Tem jeito, não. É muito palhaço, mesmo…
Ele– (se aproxima e lhe faz um carinho) – Mas tô gostando de ver que você já está espertando, querendo rebater, querendo provocar… parece que já está gostando de viver de novo.
Ela – Eu ‘tava era cansada mesmo. Mas num güento ficar isolada e parada, catando pulga. Eu sei que tudo na vida é inconstante, é que nem bunda de criança, cabeça de juiz e palavra de ladrão, nunca se sabe o que vai sair delas, não se pode confiar. Mas a gente tem que descobrir um jeito de ir em frente… mesmo eu tendo ainda um medo do futuro.
Ele – Cada coisa tem seu tempo. Não adianta querer viver antes, querer adivinhar o futuro. Nem sonhar coisas mirabolantes.
Ela – Que nem aquela mulher que ganhou 6 ovos e começou a pensar que dos 6 ovos iam nascer 6 pintos, que iam virar 6 galinhas, que cada galinha ia botar 6 dúzias de ovos, que ela logo, logo, ia ter 6 galinheiros… e nessa “viagem” já ‘tava se vendo dona de 6 fazendas…
Ele – Tá vendo? Você também conhece “causos”, olha pra experiência alheia. E já sabe que o negócio é encarar o desafio de ir adiante.
Ela – Mesmo sem saber de antemão no que vai dar… Buscando o equilíbrio… Que no fio da vida é como eu de equilibrista… é ir botando um pé, outro pé…devagar…Sem parar, mas também sem histeria de que vai cair.
Ele – Sabe, quando você chegou no circo eu já tinha virado palhaço. Mas antes disso o dono do circo tinha mandado eu ser atirador de facas.
No telão sequência vai mostrando um em função.
Ela – Eu sei. Mas sei que você não gosta de lembrar disso.
Ele – Mas também não esqueço o dia que o dono do circo me disse que isso era um número que o povo adorava, que um circo rival dele tinha, e que eu tratasse de ir treinando, senão…
Ela – … o de sempre: se não sabe fazer, rua!
Ele – E sabe quem ele botou pra aparar as facas? A filha do domador. Uma menina. 10 anos de idade.
Cena descrita no telão.
Ele – Eu tinha que rodear ela de facas, bem juntinho do corpo, Se eu errasse… era a vida dela que se ia. Ou um braço. Ou um olho.
Ela – Nossa! Eu não tinha coragem!
Ele – Aí eu me lembrei da história do rico que quis entrar no céu.
Ela – Um rico no céu? O que tem a ver?
Ele – A Bíblia não diz que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino do céu?
Ela – Sim, mas… e daí?
Ele – Um dia morreu um rico, daqueles bem safados, que enricam fazendo todo tipo de tramóias e de “malfeito“ – como tá na moda dizer agora quando se fala desses “aloprados” que andam fazendo fortuna com toda sorte de bandidagem.
Ela – Hum… Tá cheio deles por aí. Cada dia descobrem mais um.
Ele – Pois um desses morreu e chegou lá céu com a cara mais cínica, aquela cara que eles fazem quando dizem que (tom) “é tudo maldade, perseguição, eu sou inocente!”. São Pedro, que não é bobo, barrou logo a entrada. Aí o ricaço negou tudo que fez, discutiu, brigou, esbravejou, ameaçou, fez voz doce, acusou os inimigos, tudo que eles sempre dizem e fazem… Até que São Pedro ficou sem paciência e lançou um desafio: “Tá bom.Você só entra se descobrir, no meio dos milhões de almas do céu, qual é a alma de Adão”.
Ela – A alma do Adão… Danou-se! Como é que ele ia achar a alma do Adão no meio daquele mundéu de almas?
Ele – Pois ele aceitou o desafio. E saiu olhando as almas, uma por uma… Ia olhando e passando a mão… olhando e passando a mão…
Ela – Conseguiu?…?! Ah, é impossível!
Ele – Calma! Ele tá lá, olhando e passando a mão, olhando e passando a mão… olhando e passando a mão…
Ela – Ih, já tá me dando nervoso!
Ele – Até que…
Ela – Achou?! Não acredito!
Ele – Ele apontou e disse: é essa!
Ela – E era?!
Ele – Era. Com olho vivo, ele foi andando, observando, atentando pro menor detalhe, apalpando, experimentando… até que achou: Adão é o único que não tem umbigo. Que ele não nasceu de ventre de mulher.
Ela – Essa não!…Eu nunca ia imaginar!… Mas… mas o que é que o umbigo do Adão tem a ver com seu trabalho de atirador de facas?
Imagem de novo no telão.
Ele – Ai, quem ouviu e não aprendeu, bom exemplo não colheu. Tem tudo a ver! Olho vivo, ficar atento, observar, não perder o menor detalhe, apalpar, experimentar… Foi o que eu fiz. Eu peguei a menina, encostei numa tábua, fiz com giz o contorno do corpo dela, e todo dia eu ficava horas e horas atirando as facas…que tinham que passar rente à risca mas sem entrar no desenho do corpo!
Ela – Virgem Maria!
Ele – E com isso, graças a Deus, eu nunca errei!
Ela – Puxa, isso é que é desafio! Mas é como você diz: o negócio é encarar. É o que a gente sempre fez na vida.
Ele – Hum… Acho que agora já posso contar qual era a idéia, o “segredo” que fez você ficar ofendida. Agora chegou o momento de ser sincero. E eu vou ser.
Ela – Finalmente! Tô curiosa, doida pra saber o que é!
Ele – Eu me perguntei muito, todos esses dias, procurando uma idéia.
Ela – Eu também tenho pensado muito, mas até agora…
Ele – O que você faria se eu lhe dissesse… que a gente podia fazer teatro?
Ela – Fazer teatro de novo? Mas… nós agora somos só dois. E você era palhaço, de fazer rir, de brincar, fazer troça e gozação de tudo… e eu fazia drama, de arrancar lágrimas, fazer o povo todo chorar.
Ele – Então! Vamos fazer essa mistura de riso e choro que é a vida humana. Misturar verdade e invenção, realidade e ilusão, comédia e drama.
Ela – Mas nós dois somos muito diferentes. Cada um tem uma maneira de ser. Isso complica.
Ele – Não! Isso é ótimo! Por isso estamos há tanto tempo juntos: um completa o outro.
Ela – Mas se cada um vê as coisas de um jeito…
Ele (emenda) -… cada coisa é mostrada por dois pontos de vista diferentes! Isso faz enxergar tudo melhor. Fica tudo mais bem visto, mais inteiro.
Ela – E fazer qual peça?
Ele – Nunca ouviu a frase: “Minha vida daria um romance”?
Ela – Muita gente diz mesmo…
Ele – E nós já passamos por tanta coisa na vida que temos muito que contar. Muita gente vai ver, vai ouvir, e vai dizer (diversos tons): “Eu concordo com o que ele disse…” “É assim mesmo, tal qual ela mostrou”…” Eu também penso assim”…
Ela (emenda) – “Eu também sinto assim”…”
Ele – ”Isso eu nunca tinha pensado!”
Ela – ”Comigo aconteceu a mesma coisa”…
Ele – E cada um se saiu de um jeito da situação que viveu… Que a beleza da vida é que não há no mundo duas pessoas exatamente iguais, mas todos nós somos seres humanos, todos temos sentimentos, emoções, pensamentos….
Ela – E ora vivemos como Deus quer e manda…
Ele – Ora nos enrolamos e nos perdemos, como o Diabo gosta.
Ela – (Súbito, outro tom) – Mas para montar uma peça tem que ter dinheiro pro aluguel do teatro, e pra pagar cenário, luz, música, figurino…
Ele – Pra isso eu já tenho a solução.
Ela – Já tem? E qual é a solução?
Ele – Já tá resolvido. Eu comecei fazendo… um teatro. Virando um personagem: o Futuro.
Ela – O Futuro? E desde quando o futuro é personagem?
Ele – Você vai ver. Foi assim: antes de ontem, naquela inauguração que houve aqui perto, eu ouvi por acaso o prefeito confidenciando a um amigo uma coisa que me deu uma idéia. Uma idéia que eu botei em prática… e que vai nos dar cobertura pra montar a peça e ainda viver sossegado um bom tempo.
Ela – Ahn… Falando assim até parece que tirou na loteria.
Ele – Algo parecido. Eu conto o que aconteceu e você imagina a cena.
Luz muda. Ele dá dois passos, pára e “bate a uma porta”: toc,toc.toc.
Ela vem abrir, curiosa.
Ele – Bom dia! É da casa do Snr.Prefeito?
Ela – É.
Ele – E a senhora deve ser D. Minervina, a criada dele, não?
Ela – Sou sim, às suas ordens.
Ele – É o seguinte: o Dr. Prefeito me mandou com um recado: é pra senhora me entregar uma caixa grande que tá na prateleira do armário do quarto dele. Eu tenho que levar pra ele, urgente!
Ela (hesitando) – A caixa… da prateleira…?
Ele – É. Acho que ele disse… na primeira prateleira, a de cima. Não tem lá uma caixa grande?
Ela – Tem, mas… ele tem muito ciúme daquela caixa. É pra lhe entregar?
Ele – É o que ele mandou. A senhora nunca ouviu ele pegar a caixa e dizer: “Tô guardando pro futuro”?
Ela – É, ele diz isso mesmo.
Ele – Então…? Pro Futuro Ditoso. Que sou eu! É meu apelido!
Ela – Futuro Ditoso. Apelido engraçado…
Ele – É que eu sou um cara “pra frente”, tô sempre alegre, sempre rindo…
Ela – Hum… Então espera aí que eu vou buscar a caixa.
Luz volta à anterior.
Ele – E ela me entregou a caixa com todo o dinheiro que ele vem “desviando” na Prefeitura com as falcatruas que faz. Uma nota!
Ela – Mas você… você roubou ele!
Ele – Eu não. Quem roubou foi ele. Roubou de nós, do povo todo. E ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão.
Ela – Mas se ele chama a polícia, ela te descreve, vão te caçar e…
Ele – A polícia vai ficar procurando o ”Futuro Ditoso” e não vai encontrar, é claro. Mas nem tem perigo disso: você acha que o Prefeito vai querer fazer escândalo, vai querer que saibam que ele tinha esse Caixa 2 malocado pra não pagar imposto e com um grana que ele não pode declarar de onde veio?
Ela – Mas eles… (mostra o público) ’tão vendo, ‘tão sabendo, o que vão pensar de nós?
Ele – Vão chamar a gente de ladrão e ficar indignados? Que ótimo! Tomara que fiquem muito indignados mesmo e façam escarcéu e gritem que tem que mandar prender o ladrão, começando com o Prefeito e os da raça dele! Que só quando acabar a impunidade essas coisas vão começar a tomar jeito!
Ela – Verdade. Que só falar não adianta.
Ele – E o Prefeito mesmo não vai dizer nada. Só vai é começar a encher outra caixa de novo.
Ela – E… é muito dinheiro mesmo?
Ele – É o que eu disse: dá pra fazer o teatro que eu quero. E pra gente viver um bom tempo sossegado.
Ela – Nem acredito!
Ele – Pois vai ser. (sonhador) Nosso teatro… Eu estou sentindo falta de ver o riso e a alegria na cara das pessoas…
Ela – E a emoção, a cara comovida de quem tá sentindo junto com a gente…
Ele – O carinho do público. Esse carinho é tudo que um ator ou atriz precisa.
Ela – Faz a gente se sentir viva! Dá um gás novo, uma garra… é muito bom!
Ele – (aponta alguém na platéia) – Olha aquela ali, que bonitinha. Já tá até sorrindo pra mim… Se ela casasse comigo eu tirava ela da vida de manicure.
Ela – E quem disse que ela é manicure?
Ele – Se não é, podia ser…
Ela – (repete) Se não é, podia ser… Acho que é o seu lema na vida.
Ele – E é. Que é buscando o que pode ser que se vai tocando a vida em frente. A filosofia do povo é essa: devagar se vai ao longe.
Ela – Podemos começar a peça contando esses últimos tempos, em que a gente descobriu que tava se achando velho e com isso jogando a vida fora, desperdiçando tudo que ainda temos pra viver…
Ele – E aí vimos que a Vida é o maior presente, não pode ser perdida nem desperdiçada. Não vê que quando nasce uma criança é uma festa? E no aniversário, no Natal, a gente vive comemorando o nascimento…
Ela – Mas a criança vem chorando…
Ele – Porque ainda tá no espanto e no encanto de chegar e penduram ela ao contrário e dão palmada nela!
Ela – Pra ela sentir que chegou no mundo e o mundo vai ter disso também.
Ele – Riso e choro, que nem no teatro. Mas a Vida é uma coisa tão bonita, tão boa e importante, que até Deus quis virar Menino pra saber como é ser um vivente humano. Ela – E quando ele chegou, desde os Reis até o boi e o burro foram lá saudar sua chegada à vida.
Ele – Eu garanto que o público de… (nome do local em que estiverem se apresentando) também vai receber a gente com o maior carinho.
Ela – Aí nós contamos o que aconteceu conosco e damos o recado: quando acontecer com vocês de dar na vida um tropeção que nem o nosso, tem fé e vai em frente…
Ele – Vai em frente cantando: Reconhece a queda
e não desanima,
levanta, sacode a poeira
e dá a volta por cima
Ela – E aí a gente convida todo mundo pra cantar conosco! (Vêm para a boca de cena e “convidam” o povo a cantar junto):
Reconhece a queda
e não desanima,
levanta, sacode a poeira
e dá a volta por cima!
Ele – É isso aí! De novo, com mais força!
Quando termina o canto, eles, do palco, aplaudem…
Juntos – MUITO BEM!
… e são aplaudidos, esperamos.
FIM