A FOME  TEM ROSTO         

 

Escrito como colaboração à Campanha do Fome Zero, para apresentação por grupos de Contadores de Histórias de todo o país.

Um Narrador oral contando histórias em todo e qualquer lugar, com todo e qualquer público, não é algo novo: a figura prototípica do contador de histórias de um clã ou comunidade é ancestral, e tão conhecida e apreciada quanto a daquele que conta histórias na família ou em um grupo.

Mas quando a Cátedra Iberoamericana de Narração Oral Cênica, nascida em La Peña de los Juglares, em 1975, resgata não só essa oralidade, mas passa a explorar também as possibilidades cênicas da narrativa, está com essa revalorização abrindo espaço a uma nova forma de arte e gerando um movimento que a leva de Cuba a toda a América Latina.

Entre nós multiplicaram-se também os “Contadores de Histórias”, encenando suas narrativas, alguns dos quais com trabalhos de excelente qualidade, como tenho tido a oportunidade de ver em minhas andanças por festivais de teatro de todo o país, na condição de palestrante e/ou debatedora. Constatando, assim, igualmente, as possibilidades de invenção ou reinvenção comunicacional dessa forma artística, que tem a ver simultaneamente com a memória e o imaginário (pois boa parte das histórias seguem os parâmetros tradicionais do gênero), com a imaginação (do ouvinte/ espectador, que provoca, em vez de oferecer-lhe a construção física das imagens), com a rejeição da literalidade (permitindo várias leituras), coma incorporação do movimento  (transformando-se a cada passo e a cada vez ), e exigindo um compromisso de quem fala e de quem ouve com aquilo que é dito.

Por isso, entendo o que diz Francisco Garzón Céspedes, um dos criadores dessa forma artística : “A narrativa oral cênica contribui para resgatar toda oralidade, para que sejam revalorizadas tanto a oralidade da conversação no seio da família e das relações interpessoais quanto as outras formas de oralidade não-artísticas – a do orador, do professor, do vendedor, do político, do religioso. Pode-se afirmar que é um dos mais expressivos testemunhos artísticos da insubstituível e elevada significação de toda a oralidade, …….. pois é um ato de fantasia, de comunhão, de sabedoria, de estímulo, de provocação, humildade, quebra de defesas, transparência, um ato coletivo de beleza e liberdade.” (*)

Por essas características e por sua simplicidade de encenação me parece uma forma de comunicação que merece ser mais explorada. E que já tem sido usada nos mais diferentes pontos do país (RS, MT, PE, CE, GO, DF ), inclusive como abertura de seminários, congressos  e debates sobre o tema.

 

(*) Do livro Pedagogia teatral: conceptos y métodos, org. por Concepción Reverte e César Oliva, com o material do Congresso Iberoamericano de Teatro, realizado paralelamente ao Festival Iberoamericano de Teatro de Cádiz ( Espanha ), em outubro de 1994,  por iniciativa de seu Diretor José Bablé. (N.A.)

 

                                    A FOME TEM ROSTO    

Era uma vez um rei e uma princesa. (Ih! Que história é essa? dirá você, espectador. Já ouvi essa história mil vezes! Calma. Espere. Nela se fala de uma coisa de que nunca de falava antes e de pessoas que também nunca são escolhidas como personagens ).

A nossa princesa (isto é, a desta história ) crescera alegre, bonita e inteligente, e o rei já pensava em casá-la com um príncipe que tivesse muitas terras e muita riqueza: quem sabe ele próprio talvez pudesse assim vir a tornar-se Imperador, senhor de um império?

Mas a princesa tinha um defeito terrível, aquele mesmo que ( ao que dizem ) fizera Eva ser expulsa do Paraíso: a curiosidade. Do alto de seu palácio ( os palácios ficam sempre no alto, não é? ) ouvia os ecos dos ruídos das ruas e das estradas, via, muito ao longe, confusamente, um amontoado de casinhas e ficava se perguntando: como viveria esse bando de gente que seu pai chamava apenas de “povo”? E por que não podia conhecê-los, nem eles podiam entrar no palácio, como os nobres?

Um dia, aproveitando um cochilo da aia que a acompanhava por onde fosse, escondeu-se em uma carroça que trouxera mantimentos e saiu para a cidade.

Na cidade, evidentemente, despertava a maior atenção, mas isso não a incomodava. O que a incomodou foi um fato estranho e inédito ( para ela ): as ruas, as estradas e as portas dos casebres repletas de mendigos, de mãos que se estendiam à sua passagem, de figuras imobilizadas pela desesperança e o sofrimento, de ombros curvados, vencidos pelo esgotamento. De idosos com ar tão consumido, vencido, maltratado, esgotado, que já nem erguiam a mão em pedido. De mães esmolando, súplices, o sustento para os filhos, tão cedo lançados na privação, no sofrimento, na agonia da miséria e da fome. De crianças e até bebês com rostos de velhos, que pareciam já saber que não seriam vistos, nem ouvidos, e por isso apenas olhavam com olhos tristes e apagados, e se calavam.  A princesa viu, sobretudo, seu olhar: um olhar opaco, magoado, ferido, um olhar velho e agoniado até em rostos de crianças, rostos dos quais tinham sumido a alegria e a esperança. Um olhar que apenas se retraía, e nem perguntava, ou nem olhava mais… Diante deles, sem fala, ela também apenas os olhava, sem saber o que fazer ou dizer.

Enquanto isso, no palácio, uma rainha e uma aia gaguejantes e trêmulas davam ao rei notícia do desaparecimento da princesa e pediam-lhe providências. O rei, como era de se esperar, culpou todo mundo: a rainha por não ter ensinado à princesa que lugar de mulher é dentro de casa (do palácio, no caso ), os guardas por não guardá-la, o portão por não se ter trancado à sua passagem, os pássaros e as nuvens por lhe terem posto ideias de liberdade na cabeça. Tinha que achar rápido um culpado para que ninguém pudesse pensar que ele não era o melhor rei do mundo e seu reino a mais perfeita ordem do universo. Pôs todo o exército e até sua guarda pessoal nas ruas com a missão de encontrar rapidamente a princesa e trazê-la de volta para o palácio.

Não foi difícil achá-la ( por razões óbvias ). Mas algo terrível sucedera: naquele olhar de crianças e adultos a princesa descobrira duas coisas que até então desconhecia: a fome e a miséria. E o susto e o choque foram tão grandes que ela emudeceu. E nunca mais sorriu. Os dias se passavam e a princesa não mais falava e sorria como antes. O rei se assustou muito ao vê-la emudecida de um dia para o outro sem razão aparente e começou a se preocupar seriamente: quem se casaria com uma princesa muda e triste? Seu reino e seu futuro estavam em perigo!

Alguém sugere dar a princesa em casamento a quem a fizesse sorrir e falar ( é assim que acontece em alguns contos tradicionais ), mas, para esse rei, isto era demais: e o seu sonho de ter mais terras, mais riquezas e ser Imperador?

A aia, depois de muita hesitação e medo, disse ao rei que a princesa, dormindo, falava seguidamente em “fome… fome… miséria…” mas o rei achou que isso era maluquice dela: a princesa não passava fome, por que iria falar nisso? E a fome dos outros não era problema dela! Ordenou aos médicos do reino que buscassem saber o que ocorrera e lhe prescrevessem os remédios convenientes. Uns receitaram remédios e sangrias – sem resultado. A maioria tentou não se comprometer com um caso tão inédito e para o qual não viam uma solução imediata como o rei pedia. Um deles acaba sugerindo “distrações”.

Convoca-se às pressas um “artista” que era no momento o mais bem pago bobo da corte.  Ele vem e com grande pose declara:

– Majestade, há sempre gente disposta a dar importância a coisas que não têm a  menor importância. O que ela precisa realmente é de distrações. Um regime que a impeça de ter idéias, atividades que deixem seu cérebro em repouso: ver peças leves, digestivas, dançar, ir a shows, jogos de cartas, natação, ginástica, só exercícios para o corpo. Nada que suscite a imaginação, ou a reflexão. Não sair do vulgar, do rotineiro. Falar com ela apenas sobre os boatos correntes, as novelas da TV, as intriguinhas sobre os artistas em voga, o último desfile de modas, a consulta a uma astróloga… Com esse regime seu intelecto ficará reduzido ao senso comum, pensará só o já pensado,  jamais irá pensar por conta própria ou ter ideias inconvenientes. Proponho que se crie uma Sociedade Real de Promoção do Lazer que, com as devidas verbas, evidentemente, se encarregará de…

Um conselheiro que até então ouvira atentamente, concordando com o que ele dizia, ao ouvir falar em verbas se assusta e corta:

– Já existe! O lazer há muito já se transformou em consumo, já nos apropriamos do tempo livre das pessoas, e é isso que ajuda a manter a calma no reino! A fórmula é muito antiga: pão e circo. E nós sabemos usá-la. 

– Mas na falta do pão, é preciso ampliar o circo e…

Enquanto assim discutiam, a aia convencera a rainha a buscarem por conta própria uma solução: aquele santo homem que era seu conselheiro-mor, que falava em nome de Deus e por isso tinha tanta autoridade. A rainha concorda, feliz, e manda mais uma vez chamá-lo. (Ele já ouvira falar do problema, é claro, e estava até um tanto irritado por ainda não ter sido consultado). Ouve atentamente o que lhe diz a aia e concorda:

– Realmente, ver de perto a fome e a miséria é algo chocante. Eu até entendo. Mas eu sei o que dizer e fazer. Levem-me até a princesa.

Ao chegar junto dela, inicia um longo discurso, em tom ameno, melífluo, gestos mesurosos. Mas, para sua surpresa, depois de minutos ela parece não lhe dar mais atenção. Ele vai se exaltando, imposta a voz, alteia o tom, alarga os gestos, tentando impressioná-la:

– … Minha filha, pense bem! Morto de fome! Quer melhor credencial que essa para alguém entrar no reino dos céus? Se o que condena os homens é a sua ganância, é o muito que têm e querem manter neste mundo, os que não têm nada jamais serão condenados! Se tudo lhes falta e ninguém os adula, nem os inveja, nem os confronta, não têm sequer ocasião de pecar, só têm na vida sonhos e decepções! Portanto, estamos dando a eles o reino dos céus! Depois de mortos terão uma brilhante existência além-túmulo, conhecerão emocionantes aventuras que compensarão o pouco brilho de sua existência terrena! Tirar-lhes esta oportunidade seria uma maldade!

Não consegue nada e sai dali convencido de que o caso é mais grave do que supunha.

Porém o rei já está mais tranquilo: ele sabe o que fazer quando tem um problema.  Chama seu Primeiro Ministro e avisa que, se não acharem uma solução para a mudez da princesa ( e o tom se torna ameaçador, que para esta frase o tom precisa ser sempre muito ameaçador ) cabeças vão rolar!

O Primeiro Ministro não se assusta: ele sabe o que fazer quando tem um problema.  Escreve um ofício em tom ainda mais ameaçador ao Segundo Ministro, exigindo uma solução imediata! O Segundo Ministro não se afoba: ele sabe o que fazer quando tem um problema – apesar do tom e do ineditismo do fato (uma princesa preocupada com a fome e a miséria, ora veja! Por que deixaram que ela as visse?) e, mais uma vez, decide que a responsabilidade é do Governador da província. O Governador, por sua vez, adota o comportamento de praxe: encaminha o memorando a seu Chefe de Gabinete, que, irritado, o encaminha ao Secretário Geral, que estando ocupado com a telefonista no momento, o passa ao Chefe de Departamento, que o encaminha ao Diretor da Divisão… que tem a solução desejada! Ele também sabe o que fazer quando tem um problema: manda chamar o sr. Chalaça, um funcionário seu que todos sabem ser um sujeito sério, que se preocupa seriamente com assuntos sérios, como as verbas para os ministros e governadores, os interesses dos banqueiros, a aposentadoria dos magistrados e tem ainda a grande qualidade de pensar de acordo com todas as Excelências do reino. E o Snr. Chalaça realmente não falha e escreve diligentemente um laborioso e detalhado ofício nos devidos termos:

“Considerando que os motivos invocados não são suficientemente justificáveis e abrem um precedente perigoso ( já imaginaram se todas as princesas começarem a se preocupar com a fome e a miséria do povo? )

Considerando que o problema afeta toda a ordem do reino, na qual está estabelecido há muito que a sociedade deve estar dividida em ricos e pobres;

Considerando que a legislação vigente sempre foi feita em nome e a favor dos ricos, e parte do princípio de que faz parte da natureza dos pobres serem pobres e famintos;

Considerando que dar atenção aos pobres em vez de aos ricos, que são a riqueza do país, põe em risco essa ordem, e a inverte ou subverte;

Considerando, portanto, que o problema é inédito, e de suma gravidade e importância, sugerimos que se crie uma Comissão de Notáveis… (também naquele reino criar uma Comissão era sempre a saída burocrática para fazer esquecer um assunto ou deixá-lo rolando, “em estudos” durante anos e anos ).

esquecer um assunto ou deixá-lo rolando, “em estudos” durante anos e anos ).

Lida com a devida ênfase em todas as maiúsculas, a sugestão é recebida com entusiasmo. O problema seria saber quem eram os Notáveis, uma vez que era grande o número dos que julgavam merecer tal qualificação. (E problema ainda maior localizá-los porque eram, evidentemente, sábios cuja excessiva ciência os impedia de viver, pensar e amar como todo mundo ).

Mas com o rei exigindo urgência, finalmente se reúne uma Comissão de Notáveis, em solenidade presidida pelo próprio rei. E o problema é solenemente exposto. Depois de consultas ao protocolo, a palavra é passada ao 1º Notável, autor de uma tese saudada com ahs! e ohs! em todas as Academias e que lhe valera o titulo de “Intelectual do Ano”. E ele, com a pose adequada à plateia e ao momento,  começa:

– Majestade, eminentes colegas, o fato apenas comprova minha tese: tenho sérias razões para considerar a liberdade tão perigosa quanto a loucura. A liberdade em excesso pode atentar contra o pensamento correto e único – que é o nosso – e até levar aos transtornos de uma rebelião.( A aia, que a tudo assistia escondida, tem um sobressalto: mais de uma vez apanhara a princesa olhando para o portão do palácio, como se estivesse pensando em sair e ir de novo para junto “deles”: seria o início da rebelião? Mas logo se tranquiliza ao ver que o Notável acrescenta: )

-… Felizmente, este não é ainda o caso da princesa, que se mostra apenas em estado de choque – etapa ainda sanável. 

Um suspiro de alívio percorre a Comissão: este Notável realmente sabe o que diz! Mas ele prossegue:

– Porém…! Há um porém: as  consequências foram igualmente graves e nos colocam diante de uma questão inarredável: como não há efeito sem causa, agora… cessandi causa,  cessat efectus… para eliminar o efeito é preciso eliminar a causa.

O rei assume um ar de pânico: cessar a causa? O que é que ele quer dizer com isso ? Acabar com a fome e a miséria? Impossível !!  E se apressa a perguntar:

– E como conseguir isto?

O Intelectual o encara com ar irritado:

– Majestade, de fome, miséria, essas coisas comezinhas, banais, eu não me ocupo, nem com elas me preocupo. Já dei a contribuição teórica que poderia dar. Quando tiverem um assunto realmente importante podem mandar me chamar.  Com licença.

(Você, espectador, também deve estar pensando: como é possível uma autora nem tão importante escolher semelhante assunto, em vez de tratar de um tema mais relevante, como o número de vírgulas em um escritor famoso ou a importância das formigas nas guerras do século XII ? )

O rei ainda está olhando, desconsolado, sua empertigada saída quando ouve uma voz:

– Majestade, eu, Thomas Malthus, tenho a solução!

Finalmente, a palavra mágica: a solução! O rei se apressa a dar-lhe a palavra:

– AH!… Pois então fale!

– Depois de longos anos de estudo, verifiquei que a causa real da fome está na explosão demográfica. Ou seja, a fome é produzida pelo excesso de bocas a alimentar em um reino de recursos naturais reduzidos e produção agrícola limitada: o crescimento da população se dá em progressão geométrica enquanto o crescimento dos meios de subsistência se dá em progressão aritmética.

O rei se remexe inquieto no trono: não estava entendendo nada! Mas não pode confessar isso, para não parecer ignorante.

– Sim, claro, mas então o que temos que fazer? 

– Diminuir o número de bocas a alimentar! Para suprimir a pobreza temos que suprimir os pobres!

Há um ligeiro sobressalto entre os presentes: será que ele vai sugerir um genocídio, uma matança geral? Mas ele prossegue, imperturbável: 

– A miséria, o vício, as doenças e as guerras são um mal necessário porque equilibram a relação quantidade de alimentos / quantidade de alimentados, matando um bom número. Mas isso ainda não está sendo suficiente!

Outros se apressam a concordar:

– É verdade! A cada dia nascem mais e mais pobres!

– E ainda há quem lute para viverem 60, 70 anos em vez de deixá-los morrer aos 30 ou 40!

Malthus assume agora um ar mais grave, empertiga-se, faz uma pausa suspensiva, percorre com o olhar a platéia e anuncia, em tom lento e solene, sua conclusão:

– Se a população pobre continuar a crescer assim, em breve não haverá alimentos para todos e todos nós passaremos fome!

– Ele tem toda razão, apressa-se a acrescentar um Conselheiro Real. Não podemos deixar nascer e não podemos sustentar tantos pobres! Pensem bem: antes dos 6 anos de idade, dificilmente uma criança pode fazer do trabalho ou do roubo seu meio de vida; dos 6 aos 12 anos, ainda são apenas aprendizes; com menos de 12 anos, os comerciantes de crianças e de órgãos garantem que ainda não são uma mercadoria muito vendável …

A discussão se torna geral, com todos falando quase ao mesmo tempo:

– E durante todo esse tempo eles ficam às nossas custas!

– Temos, portanto, que impedir que nasçam!

– A não ser que pudessem nos servir de alimento: uma criança gordinha entre 0 e 3 anos pode dar um ótimo ensopado ou um assado capaz de alimentar nossas famílias!

– Criança gordinha, onde, desnutridos do jeito que são, só pele e ossos?

– Não é uma boa solução: entre eles é grande o número de negros! Já pensou você ter que comer uma criança de pele negra? Sem falar no fato de que se a população negra aumentar assim daqui a pouco seremos conhecidos como um reino de negros! Temos que impedir, sobretudo, que nasçam negros, isso sim!

– Sem esquecer que isso nos obriga a produzir mais armas e a ter mais guardas, para controlá-los e garantir a nossa segurança!

– Controle da natalidade deles!

– Dito assim, soa mal: fale em “planejamento familiar” que é mais elegante.

( Eu conheço este reino, já vi esse filme, deve estar pensando o leitor / espectador de boa memória…)

Malthus, surpreso, ainda tenta falar, mas nem o ouvem:

–    Esperem! Não foi isso que eu disse! NÃAO….! Ah! Eu sou um incompreendido, um injustiçado..!

         E sai, indignado. 

         Em meio ao falatório e tumulto generalizado ouve-se subitamente um grito:

– Majestade!

Todos olham o intruso, que entrara sem ser chamado e não tem sequer cara de Notável.

– Quem é você? Como entrou aqui?

Ele se apresenta.

– Meu nome é Josué de Castro. Sou um médico e geógrafo brasileiro que…

O coro dos protestos se ergue:

– Ninguém pode ser médico e geógrafo ao mesmo tempo!

– Ainda mais com esse nome sem importância!

– E ainda mais brasileiro! Do Terceiro Mundo, uma região pobre!

Mas o rei, sabe-se lá por que, decide deixá-lo falar. (Talvez se lembre de que, nas histórias que ouviu, aparecia sempre um João Mata-Sete, um Gato de Botas, ou alguma figura assim que resolvia a questão. Quem sabe ele seria uma delas? )

– Majestade, eu não concordo com o que diz o Snr. Malthus: “Dos 14 bilhõesde terras cultiváveis no mundo, só 28% são por nós explorados. E 50% da parte não cultivada podem também se tornar cultiváveis. A fome é produto da má utilização dos recursos naturais e humanos. Temos é que fazer melhor uso das terras e aproveitar os recursos que a natureza oferece. Explorar os mares, os rios e os lagos, em que hoje buscamos apenas uma parte mínima de nossos alimentos. Com a ciência e a tecnologia podemos conseguir maior rendimento da produção agrícola. Podemos aumentar o valor nutritivo de certos produtos naturais para combater a deficiência de proteínas e a insuficiência de calorias de famintos e subnutridos. Podemos criar uma melhor conservação dos produtos para evitar os estragos e as perdas. Se habilitarmos efetivos humanos a utilizarem racionalmente os recursos que a natureza põe à nossa disposição, e que o conhecimento científico hoje permite aproveitar em escala infinitamente maior, a produção de alimentos aumentará enormemente e poderá atender às necessidades alimentares de todos. E os que hoje passam fome terão como viver e não apenas sobreviver.”

O zum-zum começa a crescer novamente entre os conselheiros reais:

– “Melhor uso das terras?” Não gostei da expressão: daqui a pouco vai falar em terras improdutivas, dizer que há muitas terras em poucas mãos, que nossa economia agrária é retrógrada e conservadora!

– “Habilitar efetivos humanos a usar os recursos naturais?” Que é que ele quer dizer com isso? Não vai ele querer vir com aquela história de “reforma agrária”, de dar terra a quem produz!

– Ou será que vai querer rever as relações jurídicas entre os proprietários de terras e os trabalhadores agrícolas, dizendo que eles são explorados, e tudo mais? Ih!… Não gostei!

– E a distribuição desses produtos? Teria que haver um plano de distribuição alimentar nas áreas carentes… e isso custaria uma fortuna!

– O pessoal dos transgênicos nos mata! Estaríamos tirando toda a sua renda!

Alguém finalmente ousa um altivo aparte em voz alta:

–   Sr. Josué! Há um dado essencial que o senhor não leva em conta: de que adianta aumentar a produção alimentar, se esses miseráveis não têm poder de compra, recursos, dinheiro para adquirir esses alimentos? Já nem falo no transtorno que daria ter que queimar ou estocar tantos produtos para não deixar os preços caírem no mercado…

Zum-zum geral ecoa:

O mercado…! Exato! O transtorno no mercado!

– O que é que o senhor vai querer propor? – emenda um segundo Conselheiro. O que outros reinos já tentaram? Distribuir terras, criar fazendas coletivas, cooperativas agrícolas, ou outros meios de eles terem sua subsistência por meio de seu trabalho? De não dependerem dos proprietários de terras – que evidentemente não podem empregar todos esses trabalhadores, nem pagar esses preços exorbitantes com que eles sonham?

Todos encaram Josué, no aguardo de sua resposta. Mas antes que ele possa responder, uma luz brilhante surge subitamente próximo a Josué, assustando o rei e despertando a atenção de todos. De dentro dela sai um velhinho de ar tranquilo e sorridente. O rei o interpela, irritado:

– Outro?!… Não estamos esperando mais ninguém! Que.. quem é você?

– Eu sou Deus.

Um dos Notáveis protesta imediatamente:

– Não pode ser. Deus não existe. A ciência provou e a sociedade aprovou: Deus não existe!

– Como não existe, se estou aqui, na sua frente, e se provo minha existência todos os dias e em todos os lugares? – responde Deus.

– Mas não pode ser, já disse. Querem ver? O senhor diz ser Deus? Então vamos verificar sua identidade. Responda às seguintes perguntas: qual o seu nome completo? Local de nascimento? Nome de seus pais? Residência? Número de sua carteira de identidade?

Deus se cala e apenas sorri.

-Veem? Não tem resposta! Se perguntarmos por seus dados pessoais – peso, altura, cor da pele, dos cabelos – também não vai saber responder. Quando tiver essas respostas, apresente-se e aí então será ouvido. Agora retire-se, que ninguém aqui está disposto a ouvi-lo!

– Eu estou!

Susto geral: a princesa entrara sem ser pressentida, e, mais que isso, falara! Enquanto todos se entreolham, buscando refazer-se do susto, Deus começa a falar:

– O eixo do problema de vocês é a Justiça. Se alguém tentar encontrar a Justiça entre vocês, onde poderá encontrá-la, me digam? Vocês não saberiam responder. De tanto ser enxotada ela acabou ficando cada vez mais esquecida, até que a Desigualdade se instalou aqui e a expulsou de vez. Se forem procurá-la entre os grandes, não a encontrarão porque ela atrapalha seus interesses; se forem buscá-la entre os pequenos, verão que para eles a justiça é apenas sonho ou desejo; se a buscarem entre muitos dos que se dizem justos e justiceiros, só a encontrarão em suas palavras, mas não em suas ações. De sorte que a Justiça não achou aqui onde pousar e foi pedir abrigo à Esperança – e aqui neste reino não se encontra mais nem rastro dela.

O Rei se adianta e declara:

– O que o senhor seja-lá-quem-for diz nos ofende! E não tem nada a ver com o problema em causa!

Ao que Deus retruca, com a mesma calma:

– Como não? Tem tudo a ver. Durante seis dias criei um mundo capaz de abrigar o homem e no sétimo dia, ao criar o homem, dei-lhe esta Terra para que dela fizesse sua casa, sua morada. Nela haveria sociedades, com os homens juntando-se em grupos em que cada um visse no outro um socius, um aliado ou irmão. Eu não criei os homens divididos em ricos e pobres. E o “crescei e multiplicai-vos!”  foi dito para todos. Mas alguns poucos foram se apropriando do que deveria ser de todos: hoje chegam ao cúmulo de querer ser donos da terra, do ar, da água, do espaço e cobrar por eles. Para ter lucro e acumular riqueza, acumulam miséria: concentram os bens em suas mãos, excluindo os demais. O ganho e o dinheiro são seu único valor: menosprezam o ser humano e desprezam a vida.

O burburinho sobe entre os conselheiros:

– Esse sujeito é perigoso! E se ele sai dizendo isso por aí?

– Vê o que ele condena: é tudo que nós fazemos!

– Esse cara que se diz Deus está contra nós!

Enquanto isso Deus continua sua fala:

– Aos economistas caberia a gestão dessa Terra, dessa casa de todos. Mas o que eles fazem? Preocupam-se apenas com o crescimento econômico e deixam de lado o desenvolvimento social; trabalham pelo lucro de poucos e não em nome das necessidades de muitos; usam essas necessidades para garantir a exploração e a dominação. E fazem-se de surdos quando alguém fala em dar aos excluídos cidadania e uma vida digna, acesso à terra e ao crédito, assistência técnica e cultivo adequado, que garantiriam não só a sobrevivência deles, mas as necessidades de todos. 

É quando a princesa que a tudo ouvia atenta e em silêncio solta um grito:

– Eu quero falar!

A perplexidade se desenha nas sobrancelhas franzidas e no olhar interrogativo dos conselheiros e do rei: ela ia falar? E o que iria ela dizer?

– Agora entendo o que se passa, diz ela. E vejo que a fome e a miséria não são uma fatalidade, como pensei – ideia que me entristecia e não ser deixava ser feliz. Mas já sou maior de idade, posso escolher meus caminhos.  Por isso, Deus, Josué, quero ir com vocês ao encontro dos que têm fome e sede de Justiça para, todos juntos, irmos buscá-la e trazê-la conosco.

(Pronto! Meteram essas ideias inconvenientes na cabeça dela, pensam os conselheiros e o rei, muito aflitos. E mais aflitos vão ficando à medida que Deus acrescenta: )

–   Não estaremos sozinhos. Lá pelo ano de 2008, Jacques Diouf, Diretor da FAO- uma Organização para a Agricultura e a Alimentação – já estará dizendo ao mundo que modificando a infraestrutura atual, usando a tecnologia e estimulando a pesquisa, será possível aumentar a produção alimentar, ampliar o acesso aos alimentos, reduzir ou eliminar a fome e a miséria. E que adotar os meios e medidas urgentes para isso é apenas uma questão de vontade política.

A princesa parece alegrar-se muito com o que ouve:

–    A Esperança me diz que um dia serei Rainha e poderei ter, no meu reino, conselheiros e guias conscientes e dispostos a trabalhar no sentido que vocês falam! E os que hoje são excluídos e famintos estarão conosco. E sua força, sua energia alimentará nosso esforço, nossas iniciativas, nossa luta contra os que tentarem nos impedir, até o dia em que, como diz Deus, a Terra possa ser a morada de todos, e houver em todas as mesas o pão e o vinho celebrando sua união.

Vai até Deus e Josué, dá-lhes a mão e, diante da surpresa que imobiliza os demais, de mãos dadas caminham para as portas, que se abrem, deixando entrar uma luz clara e brilhante – anúncio da Esperança que os leva a pôr-se a caminho.     

Longínquo ainda, mas já audível, começa a ouvir-se o canto que vem da terra e vai crescendo: (*) 

                                 Debulhar o trigo

                                 Recolher cada bago do trigo

                                 Forjar do trigo o milagre do pão

                                 E se fartar de pão…

                                 Decepar a cana

                                 Recolher a garapa da cana

                                 Roubar da cana a doçura do mel

                                 E se fartar de mel

                                 Afagar a terra

                                 Conhecer os desejos da terra

                                          Cio da terra propícia estação
                                           E fecundar o chão…

Eles saem, deixando o rei e seus conselheiros se entreolhando, aflitos, a braços agora com um novo e sério problema: como manter essa princesa bem longe e impedir  que ela possa um dia chegar a ser rainha daquele reino?

Mas isso já é uma outra história… 

 

(*)  ( “Cio da terra” – Milton Nascimento / Chico Buarque )